Velhas práticas de Estado e seus efeitos sobre as populações negras: a chacina do Jacarezinho
Por Flávio Rocha
Mais um episódio bárbaro protagonizado pela lógica da política de segurança pública. Uma chacina, ou pior, genocídio. Sou um pesquisador, professor, crítico e homem negro. Atravessado por esses papéis sociais, encontro-me anestesiado pelo bombardeio de notícias diárias sobre mais corpos negros tombados: dezenas, centenas, milhares, se contarmos dias, meses e anos.
No dia 06 de maio de 2021, ocorreu o que está sendo denominado “a maior chacina da história do Rio de Janeiro”. Chacina que faz parte de um projeto de genocídio, que incide sempre sobre populações pretas! Tem dúvidas? Dê uma olhada no mapa racial da cidade. Garanto aos leitores que a matança não recai sobre o Leblon, Barra da Tijuca ou Lagoa. Se analisarmos historicamente o Rio de Janeiro, veremos que as políticas estatais que produzem exclusões materiais ou simbólicas de segmentos da população sempre recaem sobre territórios majoritariamente negros.
Políticas de remoção que atravessaram o século 20 e continuam no 21 incidiram sobre cortiços, favelas e outras ocupações de pretos e pardos. Se seguirmos para as políticas de moradia popular, percebemos o intuito da administração pública em fixar pessoas – negras ou proletarizadas através do recorte de renda – em lugares “longínquos”, na perspectiva de centralidade urbana, do Centro e da Zona Sul.
Até os dias atuais, outras lógicas se arrastam: a militarização, novas remoções, políticas habitacionais sofisticadas que excluem determinados segmentos da população de lugares específicos. Compreendendo que, estruturalmente, as populações negras ocupam a base da pirâmide de classe brasileira, vemos que a classe no Brasil possui raça e cor.
Desse modo, a chacina no Jacarezinho mais uma vez escancarou que as políticas de Estado recaem sobre as populações negras, uma vez que produziu mortes de pessoas em território negro. Violando distintos pontos dos direitos humanos: direito à vida, direito à propriedade, direito de ir e vir e, até mesmo, direito a não tortura (sim, em plena “democracia”).
Essas violações são feitas por policiais, muitas vezes também negros, trabalhadores que representam o Estado e submetem-se à lógica genocida da segurança pública. Matando sem ao menos ver os moradores de favela como seus iguais, como seres humanos. Um cotidiano que realça as falhas do sistema, ao tornar esses trabalhadores parte de uma máquina que mata os traficantes do varejo de drogas nas favelas, mas é omissa à questão do fornecimento de armas e entorpecentes.
Sabemos muito bem que os varejistas se encontram em bocas de fumo dominadas por facções criminosas e não possuem helicópteros, barcos, entre outros equipamentos que possibilitam o transporte de armas e drogas para as comunidades. Quem faz esse transporte? Quem realiza a mediação dessa negociação? Se há varejistas, há atacadistas. E se existe essa negociação, é porque a política de segurança pública não possui interesse em combater a prática atacadista.
Os moradores de favelas não aguentam mais essa política de enfrentamento, de produção de guerra. Em muitos países é inimaginável que a polícia transite de fuzil pelas ruas das cidades, que moradores acordem com helicópteros atirando sobre suas cabeças, que paire uma sensação de morte a todo momento. Não devemos banalizar que crianças das favelas cariocas vivam com a presença ostensiva de armas, drogas e tiros que subitamente podem acertar seus corpos: seja da arma de quem for. Devemos desnaturalizar a favela como um território de guerra, apagar de nossas mentes a normalização de que certos lugares podem ter tiros e em outros isso seja inimaginável. Vide que alguns recebem polícia de proximidade e outros ganham UPPs e intervenção do exército.
Se nós, enquanto sociedade, não alterarmos a nossa percepção de que os inimigos não estão nas favelas, continuaremos banalizando vidas. A política de segurança pública não pode se basear em operações policiais que culminem na morte de moradores, mas sim em intervenções na fonte das armas e drogas e na oferta de serviços básicos de infraestrutura, saúde, educação e assistência social. Invadir favelas e matar populações só perpetuará a desigualdade social e racial. É preciso dar um basta ao genocídio do povo negro.
Flávio Rocha é antropólogo, mestrando do PPCIS/ UERJ e pesquisador do NESP.