Expertises e mediações: diálogos transnacionais da arquitetura

Desenho de George Exline, publicado em 1991 na revista de arquitetura e urbanismo A+R. Fonte: ARCHITECTURE SKETCH BLOG — Gerald Exline. A+U, 1991 Taken from: rndrd.com (tumblr.com)

Por Paulo Vitor Ferreira da Silva

Desde março acontece no Rio de Janeiro o 27º Congresso Mundial de Arquitetos – UIA RIO 2021, promovido de forma inédita no país pela União Internacional dos Arquitetos (UIA) sob a organização do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB). Planejado para ocorrer presencialmente em 2020, sua data e formato foram modificados devido às restrições sanitárias e ao contexto de incertezas ligados à pandemia da Covid-19.

Com estimativa de participação virtual de cerca de 20 mil inscritos, o Congresso acompanhou o “novo normal”, programando ao longo de cinco meses uma série de mesas e palestras com arquitetos e arquitetas notórios em níveis nacional e internacional. Em julho, foram concentradas as principais atividades, como a elaboração da Carta do Rio, concebida aos moldes da Carta de Atenas de 1933.

Motivado pela realização desse grande evento e pelo meu interesse de pesquisa no campo da arquitetura, compartilho nestas breves notas duas ideias que penso serem interessantes para o estudo das dinâmicas das redes profissionais e de seus processos de legitimação perante a sociedade e a administração pública. Parto do entendimento de que esse tipo de congresso não é realizado apenas para oferecer um panorama do atual estado de desenvolvimento teórico da arquitetura e de seus debates e questões mais proeminentes, como costuma ser apresentado nas falas de palestrantes e organizadores.

A primeira ideia é que podemos encarar a própria realização do congresso, ainda que no modo virtual, como produtora de um espaço de performatização e visibilidade de certa expertise ou conjunto de competências reivindicados pelos arquitetos. Isso significa perceber a organização material e simbólica do evento e os sentidos que mobiliza como elementos de reconhecimento e legitimação de certo tipo de saber – tanto para a própria categoria profissional, quanto para o público não especializado e a administração pública.

Essa legitimação de expertise proporcionada pelo evento se torna especialmente evidente no atual contexto de pandemia. Em entrevista para o canal do Youtube da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), o presidente do IAB-RJ e comissário geral do congresso, Igor De Vetyemy, comentou o processo de adaptação que o UIA RIO 2021 atravessou por conta da Covid-19. Sua fala enfatizou que uma das grandes questões que emergiu foi a necessidade de pensar qual modelo mundial de cidade se tornará suscetível ou não a pandemias. Em determinado momento de sua fala, ele lembrou que “30, 40%, às vezes 50% das nossas cidades” não contam com o trabalho dos arquitetos. Seguiu então com um apelo para que a sociedade confiasse na capacidade técnica e na mobilização social apresentada pela categoria profissional desde a abertura democrática do país, em alusão à participação dos arquitetos na elaboração da Constituição de 88.

Outra fala que considero reveladora foi sua comparação entre a Carta do Rio de 2021 e a Carta de Atenas de 1933, essa última elaborada e assinada por grandes nomes da arquitetura, como Le Corbusier, em um contexto de estabelecimento das bases teóricas e metodológicas do planejamento urbano. Ao propor a comparação, além de reafirmar o lugar do arquiteto como especialista, ele buscou estender no tempo o reconhecimento do evento como produtor legítimo de um tipo de domínio específico. Afinal, o congresso mobiliza milhares de especialistas de diversas partes do mundo para debater temas caros ao campo arquitetônico e, com a produção da Carta, suas redes de relação desejam lançar orientações para futuros projetos a serem implementados nas cidades.

Dessa forma, chamo atenção que é precisamente a partir dessas falas e mobilizações da coletividade profissional que o congresso atualiza e amplia o reconhecimento dos arquitetos para identificar “problemas” e propor “soluções” para os centros urbanos. É através de enunciados e eventos como esses que a categoria atua performaticamente e organiza uma série de elementos que a conformam, autorizam e legitimam: como a crença na expertise técnica e intelectual dos arquitetos, a defesa da importância de seu papel social na produção das cidades e a centralidade de seus saberes para enfrentar, junto à administração pública, os atuais e futuros cenários de pandemia.

A segunda ideia que desejo compartilhar conecta-se também aos sentidos portados pela formulação da Carta do Rio. Aqui ressalto o papel do congresso como articulador e mediador entre saberes e práticas locais e globais. Pois é evidente o esforço por parte do IAB de apresentar-se como ator social competente em sua expertise na lida com questões urbanísticas das grandes cidades, com habilidades calcadas em uma agenda mais ampla de conhecimentos.

Afinal, para o instituto de arquitetos e seus pares, o reconhecimento a nível local de sua capacidade de realizar a mediação entre redes locais e globais de arquitetos, urbanistas e planejadores, inserindo-os em trocas e diálogos transnacionais, legitima um lugar privilegiado de ação social e política. É por meio desses atores-mediadores que observamos como os avanços técnicos e teóricos de determinado campo passam a circular localmente. Um enfoque que pode ser analiticamente bastante produtivo para pensarmos as dinâmicas de produção de conhecimento no Sul global.

 

Paulo Vitor Ferreira da Silva é antropólogo, professor da rede estadual de ensino, pesquisador do NESP/UFRJ e autor da dissertação de mestrado Arquitetura como “profissão de Estado”: IAB-RJ, redes de relações e saberes administrativos (PPCIS/UERJ, 2018).