As linhas emaranhadas da realidade. Uma análise da exposição “Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros”
Por Willyan Bueno
Na capa do livro há uma garota, olhos arregalados, suas sombras mostrando o pouco do horror que sente — uma dessas sombras parecendo lhe dar um nariz sangrando, uma marca de violência física. Agarrada em suas mãos há uma boneca totalmente branca (ou ao menos a cabeça de uma), sem sombra e sem contorno, algo sem profundidade que se desvanece e se torna, em certos momentos e em certas partes, o vestidinho da garota, que também está branco e sem influência da composição de luz. Atrás dela, linhas grossas e finas se contorcem em ângulos retos e agudos, confundindo suas cores entre o vermelho sangue e o preto desbotado e, de uma forma que não entendo, todas essas linhas parecem demonstrar mais essa violência que está tentando ser velada para o leitor do que qualquer outra coisa.
Uma marca de guerra, talvez; algo que não sai de nossa mente, nosso inconsciente. Talvez essas linhas simbolizem os andaimes, os ferros e ligas metálicas que se mostram a olho nu em prédios que estão sendo construídos; ou — sendo o caso que eu acredito — talvez essas linhas mostrem prédios que estão ruindo por conta própria, no qual a garota e eu não podemos fazer nada para evitar que ele se desfaça. No lado da garota está escrito o nome da escritora do livro, Carolina Maria de Jesus, e “FOME”; apenas fome. O título do livro é “Pedaços da Fome”, mas a última palavra é a única que aparece para nós nesse horror que não se desfaz em nossos olhos, assim como nos olhos da garotinha perdida que olha para o além.
Vi essa capa diversas vezes e de diversas maneiras por conta de minhas aparições no Museu de Arte do Rio (MAR) — nas vezes que ele ficou gratuito a todos em 2023, e na vez em que professores organizaram um passeio para alguns alunos — durante a exposição que tinha como ideia apresentar a vida de Carolina Maria de Jesus e sua ligação com o Brasil, o seu projeto de nação, a comunidade negra e sua dor, sua fome. Nessas linhas emaranhadas que se interligam e se cruzam e se influenciam e disputam entre si, onde o museu, a sua maneira, com seu poder cênico, mostra uma narrativa. Uma narrativa solta, por momentos prestes a se desintegrar, mas que ainda assim transmite uma mensagem de cultura, poder, realidade(s), no qual, mesmo que peguemos uma parte ou outra da exposição, ainda assim pegamos algo que está além das palavras, algo que se conecta com o subjetivo de todos numa cena objetiva.
Há uma ironia, uma brincadeira boba, em querer se utilizar de Crapanzano em uma ida despretensiosa ao museu, buscando o “reconhecimento do objetivo que facilita a precipitação da cena e nossa experiência dela, tanto quanto é a realidade objetiva do psicanalista enquanto psicanalista e a do paciente enquanto paciente que facilitam as projeções da transferência e da contratransferência” (Crapanzano, 2005: 360). Ver o museu, com toda sua intenção de impactar ou mostrar algo aos seus espectadores, se utilizando de luzes, pisos, artefatos, sons e toques e textura para causar esse impacto e essa mostra de algo. Contudo, isso cresceu em mim. Lembro agora de Clarice Lispector:
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a. (LISPECTOR, 2019: 17-18).
Correndo o risco de distorcer a autora de maneira irresponsável, de brincadeira pueril e metalinguística de querer analisar um museu com teatralidade própria me utilizando da ideia crapanzaniana de “cena”, isso no fim metamorfoseou-se neste texto sobre discurso, realidade e cultura. E sobre captar através da linguagem escrita o que se está além dessa possibilidade de linguagem. De captar, talvez, no fim, a mim mesmo. Eu como espectador, eu como alguém criador de realidades, eu como discurso. Eu como “discursor”.
Uma frase muda [a interpretação d]o fim do filme
“Linhas são realmente muito interessantes. Linhas que ligam pessoas, linhas que unem o mangá e o romance. A linha que liga um filme a uma canção. E, quando você almeja algo do fundo do coração, elas estão lá como se tivessem sido planejadas. Elas são salvadoras” (INOUE, 2017: 224). Enquanto pensava em ideias e citações para resumir, de maneira contida, mas também lírica, as minhas experiências nas idas ao MAR, lembrei-me dessas palavras de Takehiko Inoue. Não só linhas que interligam uma coisa à outra, mas tintas, sons, barulhos, luzes. Pinturas que se interligam com o espaço, que acabam se interligando com as pessoas (ou ao menos davam a intenção de se interligar), que por fim se interligam com o prédio das exposições e sua arquitetura, seus andares e objetivos, que se cruzam, se emaranham e se confundem com a rua no qual o prédio estava, às suas lutas…
Contudo, saindo um pouco desse sentimentalismo um tanto arcaico e infindavelmente poético que se pode fazer para dar pompa ao texto, por mais que essas tais linhas, tintas, sons, barulhos, luzes se interliguem às pessoas e suas subjetividades, em parte havia nessas pessoas também uma ação de querer se ligar a elas, que se distancia da visão unilateral de que é a arte que se conecta às pessoas; esquecendo, porém, que essa ligação deve e precisa ser recíproca. Onde, talvez em um jargão filosófico confuso, há tanto no espectador quanto na arte uma relação de decodificação: tanto o sujeito tenta entender a obra, como a obra tenta entender o objeto. Há um papel que ambos devem seguir e que, caso eles saiam de forma precoce, a magia da exposição se perde.
Havia nos diversos visitantes da exposição diferentes reações às obras. Alguns iam sozinhos, olhando pensativamente as obras, os quadros, molduras, esculturas e vídeos. Outros iam em bando, alguns desses grupos tentando decodificar as obras, enquanto outros apenas casualmente olhavam as fotos e imagens, discutindo causalidades enquanto percorriam o espaço e vez ou outra apontavam para algo. Mas havia, a meu ver, em todos eles e seus trejeitos que se traduziam na inquietação de seus olhos, uma imagem de função, de que papel eles tinham que vestir e despir perante os guardas do MAR e das pessoas ao redor. Uma função semelhante — embora não exatamente idêntica — a de um estrangeiro. Há incongruências nessa metáfora ou comparação, claro. Mas ao mesmo tempo que somos destinados a, de certa forma, “consumir” tudo que está à nossa volta (com prazer, inquietação ou aversão a estética, dentre outras coisas), nós também temos que nos distanciar de tudo para, logo em seguida, aproximar-nos novamente. Não só devemos compreender o papel de uma pintura na parede — o que a obra está querendo passar com as cores, distorções e expressões —, mas compreender o seu papel quando foi feito e seu papel no todo da exposição, a sua particularidade e universalidade que desbloqueia a mensagem do lugar e, com isso, a cultura desse mesmo lugar. Tanto o do museu quanto do próprio país que construiu o museu.
E talvez isso se deve ao próprio papel do Museu de Arte do Rio, ao menos na exposição da Carolina Maria de Jesus. Mark Fisher, numa crítica aos museus britânicos e das expropriações e roubos que eles faziam aos artefatos históricos pertencentes a outros países, diz que podemos ver objetos “reunidos como se estivessem dispostos sobre o balcão de uma nave de O Predador” (Fisher, 2021: 12). Entretanto, por trás de tais críticas, uma ainda persiste apesar de o foco da frase ser outra: a do estranhamento que as exposições precisam causar nas pessoas, desse mundo novo e descoberto que, apesar de tudo, ainda é semelhante. Na exposição da Carolina, além do sentimento de familiaridade e representatividade com a minha vivência, o que senti foi um estranhamento, uma descoberta de um mundo que não era meu, que nunca poderia ser, mas que eu precisava estar inserido. E esse mundo é frágil: um simulacro de algo maior. Talvez um simulacro de um simulacro, levando em conta que a exposição se baseia em um livro contando uma história pessoal de uma perspectiva particular — sem contar o tempo e contexto histórico no qual o livro foi escrito, que precisa ser representado nas paredes de uma maneira ou de outra. Mas ainda assim sempre mantém uma mensagem semelhante à visita anterior ao local, apesar de sempre mudar os trejeitos da mensagem.
Lembro da vez que, após assistir um musical sobre a vida de Elis Regina, fui ver vídeos sobre esse mesmo musical para me lembrar das performances, das falas, das músicas. E foi algo engraçado. Os atores não eram os mesmos. As músicas por vezes tinham um vocal mais sutil, uma melodia diferente, um tom abaixo ou um tom acima. As falas, as pequenas piadas, por mais que fossem as mesmas, tinham palavras, vícios, tons irônicos ou exasperados diferentes da vez que fui ao teatro assistir a mesma peça. O tempo das mesmas piadas eram mais pausados, as coreografias as vezes mais vivas, as vezes mais robóticas. Mas era o mesmo musical, a mesma Elis que foi transportada do roteiro para o palco, as mesmas músicas com as mesmas letras. E eu, ao repensar nessas minhas idas à exposição, que sempre era a mesma, mas era sempre diferente o que eu extraía, me lembro dessa experiência.
A foto é simples: Carolina Maria de Jesus está em frente a câmera, sua cabeça um pouco apontada para baixo, embora seus olhos estejam brilhando para a foto, olhando para nós em uma certa vaidade, talvez por conta de seu reconhecimento perante uma coisa tão luxuosa na época quanto uma câmera, ou por conta da sua roupa elegante, seu colar que aparece sutilmente em seu pescoço, seu cabelo bem penteado e sua pele bem fotografada. Atrás aparecem casebres mal iluminados por conta da noite, enquanto jovens estão entre olhar para a Carolina e olhar para os que passeiam pela exposição de Carolina. Mas o tanto que ela foi ressignificada em minhas idas é impressionante — seja por algo externo, ou algo da própria exposição ou das exposições de outros andares ligadas a elas. As minhas idas sozinhas ao museu faziam dessa foto uma amostra dessa solidão ou solitude de Carolina, essa aura taciturna que sempre fora presente em suas obras. Acompanhado, representava essa coletividade invisível, invisível perante a própria foto, mas que se faz presente, como um assombro, um fantasma que não se pode negar.
Quando a exposição no andar acima dessa de Carolina era sobre ancestralidade africana e religiões de matrizes africanas, Carolina é quase uma força materna, uma mãe zelosa que vigia e cuida de todos nós no presente mesmo estando abraçada no passado, assim como a exposição acima dava um ar de calma, cuidado, amor, com suas músicas calmas e com o renascimento e tradição sendo o foco de tudo — seja com aforismos, quadros, obras experimentais. Contudo, quando a exposição anterior era sobre o funk, com suas batidas, ritmos, com o funk, o jazz, o soul e a periferia aparecendo, Carolina é quase que precursora da ostentação, a Vedete da Favela com a tal “marra” que sempre foi alvo de críticas para diversos grupos brasileiros, mas que ela e o funk nunca se deixaram ligar.
Mil Carolinas em uma só. E, apesar de todas essas interpretações, a mensagem e o sentimento é o mesmo: de um orgulho negro sendo fotografado em um momento único, não mais possível de ser reproduzido, numa realidade que a própria exposição criou. Mas que ainda persiste: sendo simulacro de uma maior ou, numa visão mais simplista, sendo a realidade brasileira que nos foi negada.
E aí está a magia da exposição da Carolina de Jesus. A iluminação, as obras, o lugar onde cada objeto é colocado, as músicas, o piso, vídeos em telonas, vozes, acessórios, todas essas coisas tentam não só mostrar uma realidade ou uma simulação de realidade dentre várias outras, como tentam ser a nossa realidade; não só falar da nossa realidade brasileira atual entre várias outras atuais, mas da realidade brasileira como um todo. Em frente a uma obra de arte que se utilizava de esponjas caseiras para refazer uma bandeira do Brasil distorcida, onde o verde e o amarelo dos nossos campos e nossos ouros, respectivamente, se tornavam, em nosso olhar, um símbolo de nossa pobreza nacional que fazem linhas transversais e paralelas sem fim, em seu próprio ciclo vicioso, uma mulher olha para a obra e diz “essa é a verdadeira realidade brasileira”.
Em nosso lugar de espectadores de uma exposição, o que vemos é a construção e o desenrolar de uma cena e, acima de tudo, de uma narrativa, de uma metáfora, alegoria e realidade que nos escapa e nas quais, no entanto, fazemos parte, de estrangeiros de nosso próprio povo e nossa própria história. Uma realidade que, apesar dos avanços tecnológicos, históricos, dos conceitos de arte que evoluíram, apesar do tal desenvolvimento da história, ainda se cerca de uma aura fugidia, prestes a se desvanecer em nossas mãos e que, à sua maneira, disputa, conscientemente disso, o conceito não só de cultura, mas o da cultura nacional. “Mas o que é a aura de fato? Uma trama peculiar de espaço e tempo: a aparição única de uma distância, por mais próxima que esteja” (Benjamin, 2013: 59). Lembro-me agora, ao escrever isso, de outra frase de Clarice: “Tenho medo então de mim que sei pintar o horror; eu, bicho de cavernas ecoantes que sou, e sufoco porque sou palavra e também o seu eco” (Lispector, 2019: 13). Não só a Carolina de Jesus é mostrada a todos nós dessa maneira, como a própria exposição se vê e se vende de tal imagem. Ela é a indignação e o resultado de uma indignação; ela é eco e voz de uma injustiça, e cabe a nós lutarmos por essa realidade ocultada por nossa pátria.
Verdadeira realidade
“Essa é a verdadeira realidade brasileira”. Essa é, talvez, a coisa que mais me marcou nessa exposição. Não as obras, os textos e poemas, as discussões posteriores, os sons diferentes que vinham tanto das obras quanto dos passos, conversas baixas e sussurros fracos para que um olhar solto não atrapalhasse um olhar penetrante, mas essa fala — essa específica fala —, proferida por uma desconhecida, mas que está em minha mente toda vez que penso e repenso minhas idas ao MAR. Lembro que quase ri quando tal fala foi lançada ao ar e, num cochicho rápido, perguntei a uma amiga ao meu lado se isso era possível, essa “verdadeira realidade brasileira”, num momento soberbo meu. Hoje, num momento a sós, me pergunto: ela estava errada?
Quando se vai ao museu da República, há uma aura de enormidade que se apossa da gente. Enquanto eu me sentia abjeto, um inseto um tanto monstruoso num lugar tão límpido, imenso, galáctico à sua maneira, comparado a mim, uma colega ao meu lado, que me acompanhou nessa ida ao local, brincou que se considerava uma rainha ao subir as escadas sob o tapete vermelho. Os quadros realistas, as poltronas bem colocadas e bem preservadas (tão brancas que por um momento poderiam, talvez de forma rápida, mostrar um pouco do meu reflexo assim como um espelho), a arquitetura inspirada nos edifícios de uma Veneza renascentista — tudo isso mostrava enormidade. Uma criança de 5 anos segurando uma bandeira de seu país que oculta seu corpo, enquanto a casa bagunçada, mas limpa, harmoniosa a sua maneira, a protege dos belos raios de sol que aparecem na janela junto das árvores e folhagens — esse quadro que narrei quando me encontrei no palácio é o Brasil, e o Brasil é esse quadro. O quarto onde Getúlio se matou, apesar de não ter toda a pompa dos corredores e escadarias, ainda é bonito e maior que muitas cozinhas e salas de moradores de favela. Quando a garota do MAR disse que a verdadeira realidade brasileira era aquela que ela viu naquela bandeira brasileira feito por esponjas, será que ela não se tocou que esse palácio que descrevi, antigo, histórico, mas belo, gracioso, representante da frase “Brasil é o país do futuro”, também não é a realidade brasileira? Que a frigideira usada que tinha as estrelas de cada estado brasileiro em sua boca e que estava na frente de todos nós, emoldurada na parede, talvez não representasse a nossa realidade, e que a nossa realidade talvez não fosse só pobreza infindável?
Mas, de novo, ela está errada? Quando vemos as notícias serializando crimes, quando olhamos a nossa história e olhamos a desigualdade, o extermínio que foi praticado contra todos que fossem considerados anormais para a nossa nação; quando vemos no museu não só obras mas confissões, confissões de histórias envolvendo racismo, falas de visitantes contando de suas vidas prejudicadas por algo ou alguém; quando, ao olhar tudo isso, eu olho para a minha vida, a minha história, os preconceitos que sofri e que vi outros sofrerem; quando eu vejo a esponja que eu uso em casa no museu, ou a frigideira que utilizo para fazer comida na parede de lá, arranhada do mesmo jeito que a minha frigideira em minha casa; não é essa a realidade?
E aí eu vejo a magia da exposição (ou das exposições — seria um passo errôneo universalizar isso?). A exposição de Carolina opera em uma ideia decolonial: uma ideia de rever o passado se utilizando do presente, seja para preservar memórias, reescrever histórias, repensar momentos. Se pautando, claro, em questões de colonialidade e concepções latino-americanas. “Então existe um acordo secreto entre as gerações passadas e as nossas. […] Foi-nos dada, como a todas as gerações que nos antecederam, uma tênue força messiânica a que o passado tem direito” (Benjamin, 2012: 10). Mas isso não importa: não é necessário tal fato para compreender os objetivos da exposição. Nem sempre o passado construído pelo museu é fechado (num pequeno local, se lê um poema de Carolina exaltando Getúlio; um pequeno momento em que se mostra a força da mídia e da ideia de que Vargas foi um “pai dos pobres” que ingressaria o negro no país, assim como mostra essa posição contraditória em que Carolina está inserida e se vendo na história). Mas ele ainda assim é revisto, reescrito, recolocado no presente como um resultado. Também como causador de uma luta de poder sobre cultura, memória, realidade e espaço. Meu medo (será ele plausível?) era que a construção dessa realidade que conversasse conosco talvez ocultasse outras ou apenas se tornasse um negativo definitivo da outra — o que esconde casos e acasos que se perdem nessa não realidade nuançada, como a própria realidade, que se desfaz diante de nossos olhos. Mas afinal — numa nota de rodapé um tanto trágica —, tanto faz isso: essa realidade reerguida é real o suficiente, palpável o suficiente. E o que é a construção nacional de cultura, afinal, que esse campo de batalha, seja em discurso ou em armas? O que vale é a construção do real, não a veracidade entre os acasos. E nesse evento que é ir para o museu, esse real é O real.
As infindáveis areias do real
Lembro da frase de Inoue sobre linhas, traços, e das conexões que elas dão às artes, às mensagens, às formas — tudo —, e fico reflexivo. Fisher, abordando as ideias lacanianas diz que “o Real é um x irrepresentável, um vazio traumático que só pode ser vislumbrado nas fraturas e inconsistências no campo da realidade aparente” (Fisher, 2021: 35). Uma herança das nossas lutas sem fim contra discursos aparentemente rasos — herança essa que talvez a Grécia Antiga nos deixou —, ligados agora com descobertas advindas da psicologia e psicanálise; a quebra de discursos que não condizem com a realidade além daquela ligada à neurose do paciente. Aqui, o despedaçamento do que consideramos como realidade é visto como algo forte, trágico, necessário, mas doloroso. Penso nos versos de Percy Shelley: “‘Meu nome é Ozymandias, e sou Rei dos Reis:/ Desesperai, ó Grandes, vendo as minhas obras!’/ Nada subsiste ali. Em torno à derrocada/ Da ruína colossal, a areia ilimitada/ Se estende ao longe, rasa, nua, abandonada.” Nada há de nossas realidades a não ser essas areias que se estendem de forma indefinida pelo horizonte. Não há nada para as marcarem e as segurarem pelo tempo, de serem destruídas dia após dia.
Mas o que outrora era visto como doloroso, agora aparenta ser visto com graça. “Uma frase muda o fim do filme”. É com essas cenas, roteiros, papéis, ideias, mas também imprevistos, fugas, pontos de vista, ressignificações — é nessas trocas que realidades surgem e são todas verídicas e passíveis de serem feitas. “Todo o mundo é um sonho. Todo o mundo é um palco. É possível escapar do sonho? Ver além do palco? Por que o faríamos?” (Crapanzano, 2005: 371). As ruínas atrás da garotinha na capa do livro de Carolina agora são, enquanto escrevo isso, portas para um novo mundo: um mundo desconhecido, mas que ainda pode dar esperança.
Crapanzano fala de um aluno seu das artes cênicas, que, apresentando a cena de uma peça, não vê o público, só o sente. Talvez, nessas lutas pelo que é real (ou Real), e o que ele pode ser, o objetivo seja o mesmo: esse adentrar no papel da criação e ressignificação das nossas cenas e nossos papéis, ao ponto de perder de vista o público e o que nos ronda. Essa ação de encontrar nas linhas e nas molduras aquilo que expande o nosso horizonte, mesmo que destrua os antigos. Esse agir que envolve olhar “a areia ilimitada” que “se estende ao longe, rasa, nua, abandonada” em busca de algo que essas próprias areias podem nos iluminar.
Referências bibliográficas
BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Mecânica. Porto Alegre, RS: L&PM Pocket, 2013.
_______. O Anjo da História. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
CRAPANZANO, Vincent. “A cena: Lançando Sombra sobre o Real”. Mana, 11 (2): 357-383, 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/mana/a/D8qHHF6NWGZRdVVHxsBwxbr/?lang=pt. Acesso em: 6 dez. 2023.
DON L. Aquela Fé. Compositores: Don L, Deryck Cabrera, DJ Caique e Nego Gallo. Produção: Don L e Deryck Cabrera. Intérprete: Don L e Nego Gallo. Gravação de Don L. 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZYKJZBGIqnM. Acesso em: 26 dez. 2023.
FISHER, Mark. Realismo capitalista: É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? São Paulo: Autonomia Literária, 2021.
JESUS, Carolina Maria de. Vedete da Favela. Compositor: Carolina Maria de Jesus. Gravação de RCA Victor, 1961. Disponível em: Carolina Maria de Jesus – Vedete da Favela (youtube.com). Acesso em: 4 de jan. 2024.
INOUE, Takehiko. Vagabond. São Paulo: Panini, 2017.
LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco, 2020.
SHELLEY, Percy Bysshe. Ozymandias. [S. l.]: Blog dos Poetas, 12 out. 2022. Disponível em: https://blogdospoetas.com.br/poemas/ozymandias/#:~:text=Ozymandias%20de%20Percy%20Bysshe%20Shelley%20Ao%20vir%20de,quebrado%2C%20De%20l%C3%A1bio%20desdenhoso%2C%20olhar%20frio%20e%20arrogante%3A. Acesso em: 30 dez. 2023.
Willyan Bueno é graduando do Curso de Ciências Sociais e integrante do Fórum Permanente de Análise de Conjuntura da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (FCS/UniRio).