Memórias dos subúrbios cariocas: uma investigação especulativa sobre a família e seus “outros”

Fotografia do livro de Felipe Charbel, Saia da Frente do Meu Sol (Autêntica Editora, 2023).

Por Nathalia Cotta

Saia da Frente do Meu Sol, obra escrita por Felipe Charbel, desvela uma jornada profunda de análise pessoal. Com uma narrativa entremeada por nuances autobiográficas, o livro direciona sua atenção à figura enigmática do tio-avô de Charbel, chamado por ele de Tio Ricardo. A trajetória desse personagem é apresentada de forma fragmentada, optando o narrador por investigar as lacunas e montar o quebra-cabeça de sua história ao longo da obra.

No bairro tradicional da Tijuca, subúrbio carioca, Charbel mergulha na vida do tio, traçando uma linha narrativa que conecta não apenas sua história familiar, mas também os laços que estruturam suas memórias nesse espaço. Esse exercício de rememoração é desenvolvido na revisita aos cenários da infância e juventude do autor: os apartamentos transitórios, os bares da cidade, os pontos de sociabilidade.

Desta forma, ele habilmente apresenta figuras “comuns” ao imaginário de outros tantos bairros suburbanos como elementos fundamentais para elaborar a trama. E assim, ao explorar a vida do tio, Charbel mergulha em suas próprias lembranças dos momentos compartilhados enquanto Ricardo residia no quarto dos fundos na casa de seus pais. Apesar de ter deixado marcas significativas, a relação entre os dois foi distante, envolta de segredos mantidos pela família ou pelo próprio desinteresse do autor à época.

As fotografias emergem como elementos-chave na trama, permitindo ao leitor mergulhar na vida do tio por meio de relatos e imagens, enquanto o narrador tece suas reflexões pessoais sobre esses registros visuais. A aura de mistério que envolve a figura de Ricardo instiga a vontade de desvendar mais sobre ele. A virada narrativa ocorre quando Charbel descobre uma caixa de fotografias no armário da avó, desencadeando um confronto entre passado e presente, bem como uma revisão de sua própria percepção sobre o tio.

A exploração do tempo através de fotografias antigas, documentos e memórias pessoais é o tema central da obra. O narrador não somente busca respostas sobre o tio, mas também sobre sua própria identidade, família e lugar no mundo, reconhecendo que, ao narrar a história do tio, também narra sua própria. Desse modo, afirma: “Ao falar dele, é de mim que falo.”

Ricardo é retratado como uma figura emblemática dos subúrbios cariocas, ambientação que cumpre o papel de representar o espaço vivido pelo tio e de resgatar a atmosfera de seu cotidiano. Sua rotina de acordar cedo para aproveitar o sol nascente pode ser entendida como a metáfora, ao iluminar os segredos e verdades encobertas. A questão da sexualidade de Ricardo emerge como sugestão de um conflito entre sua verdadeira identidade e as expectativas da “conservadora sociedade tijucana”, como definida por Charbel.

A descoberta de fotografias exclusivamente masculinas na caixa encontrada no armário da avó reforça o mistério em torno da vida íntima do tio, enquanto o autor especula sobre seus significados. O esconderijo, representado pelo quarto dos fundos, símbolizando a reclusão imposta a indivíduos como Ricardo, que optaram pela margem para viverem seus desejos.

Ainda assim, Chabel não busca completar lacunas a respeito da vida de seu tio, mas sim imaginar as diversas histórias que poderiam ter sido vividas sob a luz do sol, nos encontros nas praias e bares, entre os seus. A cada vez que o autor se depara com o pequeno acervo de fotografias de Ricardo, ele se questiona sobre o significado daquelas imagens. E essa interrogação, feita de maneira quase conversacional, acompanha sua busca incansável,  como se ele tentasse estabelecer uma espécie de diálogo com as imagens, desvendar os segredos contidos nelas: o significado de um sorriso, a posição da mão, o contato visual entre os retratados, o ambiente ao redor. Cada detalhe é analisado de forma a construir pelo menos um pedaço sobre esse espaço temporal da vida e personalidade de seu tio, até então quase desconhecidas pelo autor. Como no comentário à foto que abre esse texto:

 Quero tirar uma dúvida. Sempre que olho para foto, o que vejo é uma cena de pura alegria: um dia quente, uma praia despovoada, dois adultos brincando como crianças, rolando na areia. É Carnaval, deve ser: em que situação meu tio usaria fantasia? A dúvida que tenho é se os dois acabam de pisar na praia, depois de uma noite bem dormida, ou se ainda é ontem e eles passaram a madrugada na esbórnia – num bloco na Lapa ou num baile seco na Praça Tiradentes – e foram dali direto para a praia, bêbados, ansiosos para estarem sozinhos, longe do mundo. Será que estou enxergando o que não está na imagem?

No entanto, Charbel reconhece as limitações dessa tentativa. Ele compreende que uma fotografia captura apenas uma fração pequena da realidade, e que muitos significados permanecem desconhecidos e externos, escapando à percepção do espectador. Existe aqui uma consciência da natureza da fotografia, onde a verdade flerta com a ficção, e talvez seja esse o objetivo do autor. Mas, nesse jogo de incertezas, as imagens presentes no livro servem como um artifício para ampliar o mistério que envolve a vida e a pessoa que foi Ricardo.

Enquanto o autor se entrega ao processo de interpretação das fotografias, ele também reconhecendo que, por mais que tente, jamais conseguirá capturar toda a complexidade e profundidade da existência de seu tio através de imagens estáticas do seu passado. Esse passado é um enigma que desperta curiosidade e mistério e que, como tantos segredos familiares, é conhecido por todos. Entretanto, o verdadeiro desafio para o narrador não é desvendar essa espécie de enigma, mas encontrar uma forma de narrar uma vida que parece resistir às convenções tradicionais.

O malandro emérito, o solteirão convicto, o boêmio da Lapa, o dândi do subúrbio, o cão que rosnava para a tevê, o monge fornicador, aquele que dominava o idioma dos passarinhos, o agregado, o petulante, os escombros do ser humano, o inquilino do quartinho de fundos, o homem que arrastava pela vida um balde de mijo.

Nesse emaranhado de rótulos, o narrador se encontra diante da impossibilidade de capturar uma possível essência de Ricardo, que escapa às tentativas de categorização ou definição. Cada capítulo oferece apenas um traço do que ele foi. Assim, o desafio não é apenas contar sua história, mas encontrar uma linguagem que possa dar voz à multiplicidade de facetas desse personagem.

Ao examinar documentos antigos, o narrador identifica em uma simples certidão de óbito, uma frase que se torna reveladora: “Não deixou filhos, não deixou bens, não era leitor e faleceu sem testamento conhecido”. E, das fotografias, desvenda um pedaço da vida misteriosa de Ricardo, dado como uma espécie de Diógenes do subúrbio, em analogia à célebre frase do filósofo “De você não desejo nada, saia da frente do meu sol”, dada à rotina do tio de pegar sol na varanda pelas manhãs. Dessa forma, sua abordagem extrai significado de detalhes aparentemente banais. Cada documento, cada imagem oferece uma peça para a vida de seu tio-avô, criando uma narrativa que ultrapassa as fronteiras do tempo e do esquecimento.

 

Nathalia Cotta é graduanda do curso de Ciências Sociais da UFRJ e voluntária de iniciação científica no projeto “Fluxos e narrativas de memórias sensíveis e dolorosas”, coordenado por Roberta Guimarães.