Entre movimentos e transformações. Prática clínica e arte no Museu de Imagens do Inconsciente
Por Bernardo Kettrup
Hospício Pedro II, Hospital Nacional dos Alienados, Colônia de Alienadas do Engenho de Dentro, Centro Psiquiátrico Nacional, Instituto Municipal Nise da Silveira. A multiplicidade de nomenclaturas que encontramos em uma visita ao MII – Museu de Imagens do Inconsciente nos mostra os diversos deslocamentos institucionais, políticos e geográficos que essa instituição passou ao longo de seus mais de cem anos de existência.
Do Hospício e da Colônia de Alienados ao Instituto Municipal, do palácio imperial na zona sul do Rio de Janeiro ao complexo de prédios no bairro do Engenho de Dentro, onde está localizado até hoje, a história dessa instituição e das relações imbricadas no seu interior provocou profundas transformações no entendimento não só do cuidado afetivo na prática clínica e da utilização da arte como metodologia terapêutica, mas no próprio debate sobre a arte e a psiquiatria no país. É a partir desses pontos e movimentos que esse texto vai caminhar.
A leitura do Decreto Imperial Nº 82, de 18 de julho de 1841, que instituiu a construção do “hospital destinado privativamente para tratamento de Alienados”, nos revela como o surgimento da psiquiatria no Brasil esteve ligado a uma combinação moderna e não rara entre o poder do Estado e a influência da medicina. Até o século XIX, os chamados “alienados mentais” não recebiam qualquer tipo de tratamento ou assistência. A essa população sobrava o cuidado recluso pela família, na melhor das hipóteses, ou o abandono nas ruas e prisões arbitrárias, nas piores, sem atenção profissional ou responsabilidade estatal em qualquer um dos casos.
A partir do século XIX, inspirados em experiências vindas da França, médicos e agentes do Império passaram a defender a criação de espaços voltados para o tratamento e reabilitação dessas pessoas acometidas por doenças mentais, nos moldes da Maison Nationale de Charetôn, em Paris, que colocassem em prática tanto os conceitos acadêmicos da psiquiatria moderna, quanto da atuação social do Estado junto a essa população. A criação de hospícios, que marcaram a era manicomial dos tratamentos psiquiátricos, não representava nos planos para o Brasil apenas um movimento em direção à atenção do Estado a essa população e do tratamento das doenças mentais de forma médica e científica, mas uma afirmação do progresso civilizatório do país, dotando-o de instituições típicas das cidades europeias.
O berço da primeira instituição voltada para o tratamento psiquiátrico no Brasil foi erguido na forma de um palácio, com materiais nobres, arquitetura luxuosa e localização privilegiada, na orla da Praia Vermelha, enseada de Botafogo. A estética opulenta do Hospício D. Pedro II, no entanto, não foi suficiente para desviar a atenção do seu conteúdo e pouco tempo depois de sua inauguração o lugar já passou a ser alvo de críticas sobre a eficácia da terapêutica importada. À época, os tratamentos psiquiátricos eram baseados na privação e readaptação ao convívio social dos pacientes por meio de técnicas de controle e punição – representadas pela figura do panóptico que a construção espelhava – e algumas poucas atividades que buscavam reintegrar os pacientes à sociedade por meio do aprendizado de manufaturas, que se mostravam muito pouco eficientes.
Com a instauração da República em 1889, o local perdeu o nome de hospício e do Imperador, foi renomeado Hospital Nacional de Alienados, e apesar das críticas, manteve seu funcionamento no mesmo modelo. Mas começaram a surgir demandas da administração em relação à falta de recursos, superlotação e aos casos considerados incuráveis. Foram criadas então as Colônias de Alienados, espaços agrícolas distantes do centro da cidade para onde pacientes considerados casos perdidos eram encaminhados e ocupados com trabalhos de lavoura. Ao plantarem e colherem seus próprios alimentos distantes do hospital, os pacientes diminuíam os custos de internação e ficavam praticamente sem nenhum acompanhamento médico, tudo sob a chancela dos psiquiatras da época. Em 1890 foi construída da primeira colônia masculina, na Ilha do Governador, e em 1911 uma segunda, feminina, em um amplo terreno no Engenho de Dentro.
A partir de 1930, a situação do hospital na Praia Vermelha tornou-se indefensável. A crise política e econômica que deu fim à República Velha e a inexistência de outras instituições para receber pacientes psiquiátricos agravaram a decadência financeira, a superlotação e a falta de funcionários e insumos necessários aos tratamentos. Isso somou-se a críticas cada vez maiores quanto à crueldade dos procedimentos de cuidado manicomiais e à própria presença daquele espaço em uma região nobre da cidade.
Parte do problema foi solucionado com o fechamento do Hospital Nacional na Praia Vermelha, realocação da instituição e transferência dos internos para as instalações da Colônia de Alienadas do Engenho de Dentro, ainda sem que os métodos da instituição fossem repensados de forma alguma. A partir de 1940, o hospital é rebatizado como Centro Psiquiátrico Pedro II, resgatando a figura do último monarca do país, e se torna vizinho de favelas remanescentes de antigos quilombos e do presídio da Água Santa, como parte constitutiva do projeto de higienização, exclusão e marginalização social que deu forma à cidade do Rio de Janeiro ao longo de toda sua história.
Esse modelo de produção do espaço urbano caracterizado tanto pela ausência do Estado quanto pelo estabelecimento de instituições cujas práticas são baseadas no sequestro e apagamento dos institucionalizados no seu interior, produziu regiões nas margens da cidade para servirem como verdadeiros depósitos sociais. Para esses territórios e instituições distantes do centro e dos espaços da elite passaram a ser enviados cada vez mais corpos e subjetividades que perturbavam o ordenamento social moderno, em sua maioria pertencentes a grupos historicamente estigmatizados: os muito pobres, desempregados, moradores de rua, afrodescendentes, imigrantes indesejados, mulheres solteiras e pessoas de expressão de gênero e orientação sexual dissidentes da norma social conservadora.
Com a transferência, as novas instalações do Centro Psiquiátrico herdaram cerca de 1.500 pacientes da instituição, submetidos a péssimas condições sociais, superlotação, solidão e aos tratamentos violentos da psiquiatria moderna. Além da segregação radical, ali eram utilizadas técnicas manicomiais de controle sobre corpo e mente. O tratamento disponível generalizava desde encarceramentos, agressões físicas, espancamentos, medicalização e eletrochoques, até a derradeira lobotomia. Procedimentos coercitivos, violentos e cada vez mais comuns no dia a dia daqueles que formavam uma massa a ser controlada no interior da instituição.
Foi com esse cenário desolador que a Dra. Nise da Silveira se deparou ao voltar às atividades no hospital, depois de um longo período de autoexílio. Alagoana, e única mulher a se formar em sua turma na Universidade da Bahia, a médica psiquiatra foi perseguida, presa e passou nove anos distante das atividades depois de ser denunciada pela posse de livros marxistas, considerados subversivos pela política ideológica do governo ditatorial de Getúlio Vargas. Durante o exílio em sua terra natal e no interior da Bahia, Nise entrou em contato com movimentos inovadores da psiquiatria, entre eles com os textos de Carl Jung, autor que passou a ser uma referência dentro do seu pensamento e prática.
Ao recusar-se a aplicar os métodos que considerava desumanos e ineficazes no tratamento dos pacientes – momento representado pelo episódio em que a Dra. Nise se recusa a apertar o botão que iria aplicar o derradeiro choque da lobotomia em um dos internos – a psiquiatra é transferida para a Seção de Terapia Ocupacional e Reabilitação da instituição. Foi precisamente ali, no departamento mais empobrecido e ignorado tanto pelas autoridades administrativas quanto pelos colegas psiquiatras, que a Dra. Nise revolucionou a concepção do cuidado terapêutico e mudou para sempre a psiquiatria brasileira.
Em busca de novas formas de terapia menos violentas para o tratamento dos seus pacientes, a Dra. Nise funda, a partir de 1946, uma série de ateliês de atividades manuais e eventos recreativos. Voltadas para o lazer, arte e cultura no ambiente hospitalar, essas ações buscavam estimular a capacidade expressiva e convívio social em seus frequentadores. Ali passaram a funcionar oficinas de marcenaria, jardinagem, escultura, costura, tapeçaria e pintura e, a partir de suas sessões, Nise colocou em prática o que veio a chamar de Afeto Catalisador.
O principal problema que os internos, em sua maioria esquizofrênicos, enfrentavam era seu afastamento da realidade e dos vínculos sociais, diagnosticado na época como embotamento emocional. A partir da produção de novas pontes de comunicação e laços afetivos interpessoais entre os internos, em atividades como a expressão artística e o contato com animais, a Dra. Nise observou que o processo de reorganização da psique dos pacientes e de reconstituição dos seus vínculos sociais com a realidade externa eram facilitados e acelerados. Além disso, as obras produzidas nas oficinas de expressão artística possibilitavam uma leitura interna do estado mental dos pacientes, em uma técnica fundamentada em observações teóricas e na teoria Junguiana, e faziam parte dos laudos e exames que a psiquiatra acompanhava nos tratamentos.
O estabelecimento dos ateliês, principalmente o de pintura, foi acompanhado desde o início por Almir Mavigner. Almir era então um jovem aspirante à carreira artística, que, por não ter sido aceito no círculo acadêmico, trabalhava em um cargo burocrático na seção administrativa do hospital durante o dia e se dedicava aos estudos da pintura à noite. Graças a conversas com o então diretor do hospital sobre a organização de um ateliê de pintura e modelagem, Almir foi transferido para o setor dirigido pela Dra. Nise e tornou-se um parceiro próximo da médica, responsabilizando-se pelo ateliê e atividades de pintura no hospital e auxiliando os internos com os conhecimentos sobre materiais e técnicas que possuía. A parceria rendeu frutos e desencadeou a formação de uma rede em torno da produção das oficinas para muito além dos muros do hospital.
A abertura de Mavigner para o mundo das artes fez com que ele fosse o primeiro a observar o valor artístico das obras para além do terapêutico. Junto da Dra. Nise, ele tratou para que em pouco tempo as obras começassem a ser expostas em espaços prestigiados do circuito artístico nacional, o que formou um público interessado nos trabalhos dos pacientes da Seção de Terapia Ocupacional e abriu um profundo debate na sociedade da época. As obras dos internos sob o cuidado da Dra. Nise e de Almir Mavigner chegaram até fora do país, em diversas exposições na Europa. Entre elas, em Zurique, na Suíça, durante o II Congresso Internacional de Psiquiatria, onde chamaram atenção do próprio Carl Jung, referência dos estudos para as novas abordagens do setor de terapia ocupacional.
Foi nesse contexto de circulação das obras para além das contenções da instituição médica que o núcleo formado no ateliê do Engenho de Dentro ganhou notoriedade e novos membros externos aos trabalhos terapêuticos do centro psiquiátrico. Aos artistas integrados as atividades de pintura, desenho e modelagem, como Emygdio de Barros, Isaac Liberato, Raphael Domingues, Adelina Gomes, Carlos Pertuis, Arthur Amora, Lúcio Noeman e Fernando Diniz, se juntaram os jovens artistas Lygia Pape, Lygia Clarck, Ivan Serpa, Abrahão Palatnik, Décio Vitório e Geraldo de Barros e o crítico e curador de arte Mário Pedrosa, outra figura fundamental para os desdobramentos das atividades do ateliê.
Recém retornado ao país com um projeto de renovação estética para o modernismo brasileiro, o jornalista, militante político e crítico de arte Mário Pedrosa encontrou a confluência que buscava na produção artística que irradiava dos ateliês do hospital. Influenciados pelo que ele veio a chamar de Arte Virgem, os concretistas, como o grupo que costurou veio a se denominar posteriormente, abandonaram a representação como objetivo canônico da arte e se entregaram à livre experimentação de cores, linhas, pontos e formas, inaugurando um novo e importantíssimo capítulo para a arte nacional. A atividade do ateliê foi fundamental na realização de um novo projeto para a arte brasileira, que enfrentava tanto o academicismo da Escola Nacional de Belas Artes, quanto os retratos do Brasil, típicos do modernismo fruto da Semana de Arte Moderna de 22.
Foi Mário Pedrosa quem, em uma série de colunas de crítica de arte, defendeu as obras produzidas pelos artistas internos. Enquanto psiquiatras recusavam-se a analisar tanto o valor artístico quanto o terapêutico das pinturas e desenhos dos portadores de doenças mentais, os críticos de arte se interessaram pelas exposições e tomaram partido a favor ou contra o estatuto artístico das obras vindas do centro psiquiátrico, em discussões que tinham como plano de fundo a disputa travada entre a arte acadêmica e a arte moderna.
A entrada dos pacientes em tratamento de doenças mentais no campo das artes instaurou um profundo debate sobre os limites entre normalidade e anormalidade, arte e razão, naturalismo e experimentação, academicismo e vanguarda, definindo duas posições distintas. De um lado, era desprezada a valorização ou autenticidade das obras, em defesa da ausência de intencionalidade e falta de formação artística dos internos, fazendo uma distinção profunda entre sanidade e loucura na definição da identidade do artista, que além de desmerecer as obras fruto dos ateliês do hospital, desdenhava da arte moderna em favor da pintura acadêmica tradicional. Já a outra prezava a espontaneidade das produções dos pacientes da Dra. Nise acompanhados por Mavigner, acreditavam no caráter universal da criação artística e no valor da arte moderna, não havendo razão para discriminar a arte que vinha do centro psiquiátrico a não ser uma por uma atitude dogmática e obsoleta dos acadêmicos. Segundo Pedrosa, a arte é uma necessidade vital do ser, sendo universal a capacidade de criação e apreciação artística, que pode ser encontrada tanto nos trabalhos das vanguardas modernas quanto nos desenhos infantis, nas artes dos “primitivos” e nas obras dos internos.
As atividades do ateliê geraram, por um lado, um programa de produção, aprendizado e troca afetiva e intelectual, uma rede complexa de relações sociais indispensável para a renovação de discussões sobre a loucura, a violência das técnicas psiquiátricas manicomiais e sua ineficiência. E, por outro, a discussão sobre a formação dos artistas plásticos, a construção de sua identidade e a importância da experimentação, com a conversão de artistas figurativos, em concretistas, e pacientes em tratamento de suas doenças mentais, em artistas.
A criação do Museu de Imagens do Inconsciente por Nise da Silveira se deu com a dissolução do grupo que encabeçou os debates e o lançamento dos artistas internos nos anos anteriores. Inaugurado em 1952, o museu conferiu novo estatuto para as obras dos internos, e as pinturas e desenhos tornam-se material para comprovação das teorias da Dra. Nise sobre o Afeto Catalisador e das teses de Carl Jung sobre o inconsciente coletivo. Guardadas e zeladas para o bem da ciência e da terapêutica, em oposição aos métodos brutais utilizados no tratamento contra a loucura, elas garantem o legado de reflexão e pesquisa médica e psiquiátrica em torno dos métodos inovadores desenvolvidos naquele espaço.
O Instituto Nise da Silveira, que hoje ocupa o espaço do hospital, é fruto dessa luta do Museu de Imagens do Inconsciente pela transformação dos espaços marcados pela violência das antigas práticas manicomiais. Ao logo de 70 anos, o Museu vem promovendo a transformação de espaços simbólicos do imaginário social sobre a loucura através de exposições, cursos e seminários conduzidos ao lado dos movimentos sociais que construíram a Reforma Psiquiátrica no país. Essa experiência nos ateliês comprovou a eficácia do método proposto pela Dra. Nise da Silveira, em conformidade com princípios da luta antimanicomial. Mantendo as portas e janelas sempre abertas, sem delimitação fixa de território e identidades, essa terapêutica apostou na criatividade e liberdade como fatores fundamentais para o cuidado e exercício da cidadania.
Como resultado dessas práticas, os ateliês passaram a funcionar como um campo multidisciplinar de aperfeiçoamento e especialização profissional, oferecendo à sociedade a possibilidade de leitura da riqueza interior do ser humano, contribuindo para a mudança dos paradigmas estigmatizantes sobre os portadores de transtornos psíquicos. Ao apostar nessa nova perspectiva, as atividades nos ateliês naquela época e do Museu hoje revelam como a perspectiva normativa ordenadora da modernidade não se impõe absolutamente sobre os espaços e corpos, havendo sempre a possibilidade de encontros, afetos e a criação de novas zonas e formas de pensamento para além da violência e estigmatização. Um processo em que os sujeitos podem passar de uma categoria a outra, de um lugar a outro, libertando-se coletivamente dos rótulos que lhes foram fixados.
Referências bibliográficas
MAGALDI, Felipe. 2019. Das memórias de Nise da Silveira no Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro. Mana, 25 (3).
VILLAS-BÔAS, Glaucia. 2023. O Ateliê do Engenho de Dentro. Em: Mário Pedrosa, crítico de arte e da modernidade. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ.
Agradecimentos especiais à equipe do MII e à museóloga Natalia Oliveira da Silva, responsável pela mediação da visita do projeto de extensão Memórias Sensíveis Brasileiras.
Bernardo Kettrup é graduando em Ciências Sociais pela UFRJ, pesquisador associado ao GRUA – Grupo de Reconhecimento de Universos Artísticos e Audiovisuais e extensionista no projeto Memórias Sensíveis Brasileiras, coordenado pela professora Roberta Guimarães. Pesquisa temas ligados às relações de poder e às representações e normas sociais em produções e instituições artísticas e culturais.