A “desburocratização” do licenciamento ambiental brasileiro em nome do desenvolvimento: um debate sobre o PL nº 2159/2021

Cartaz de protesto no Acampamento Terra Livre 2024. Foto: Lucas Landau/ISA. Fonte: ISA, 2025.
Por Aline Sousa
Nos últimos dias, voltou à pauta um Projeto de Lei (PL) que já havia sido bastante discutido durante o governo Bolsonaro, dentro do famoso pacote de “passar a boiada”. Trata-se do PL nº 2159/2021, apontado pelos ambientalistas como PL da Devastação, que propõe mudanças significativas no processo administrativo de licenciamento ambiental no Brasil. Aprovada pelo senado de forma expressiva em 21/05/2025 (com 54 votos contra 13), a proposta articula a narrativa de “desburocratizar” o licenciamento ambiental, supostamente em prol do desenvolvimento de projetos considerados de interesse público e social.
Na prática, o PL simplifica as regras de licenciamento para obras como viadutos, pontes, hidrelétricas, barragens e postos de combustíveis e institui um sistema de autolicenciamento para ampliações de rodovias e projetos agropecuários (Agência Senado, 2025). Com isso, dispensa análises técnicas realizadas por empresas de consultoria independentes, como estudos ambientais voltados para avaliação de impactos dos projetos e a subsequente indicação de medidas para reduzir, mitigar, controlar e compensar os impactos identificados.
Esses estudos ambientais são parte crucial do processo de controle das práticas empresariais e cumprem uma série de protocolos e exigências para que os projetos obtenham a Licença Prévia – primeira etapa do licenciamento ambiental, em que é fundamentada sua viabilidade. A partir deles, o órgão ambiental analisa se o local e as características do empreendimento são compatíveis com o meio ambiente, permitindo que o projeto siga para as próximas fases do licenciamento.
Essa lógica de desburocratização, alinhada a uma visão neoliberal de gestão pública, não é um fenômeno recente no Brasil. Ela se insere em um processo histórico mais amplo de reformulação do papel do Estado, que ganhou força a partir dos anos 1990 com a consolidação do modelo de Estado gerencial. Esse movimento ocorreu em paralelo à estabilização do processo de redemocratização, refletindo uma adoção progressiva de práticas orientadas pela eficiência, redução dos custos operacionais e flexibilização das regras estatais.
Em 2015, foi lançado o programa Bem Mais Simples, criado pelo Decreto Federal no 8.414, de 26 de fevereiro de 2015, que fez parte desse mesmo pacote de reformas e modelo de Estado mínimo – apresentado retoricamente como ágil e eficiente, um discurso que se fortaleceu ainda mais no contexto brasileiro de articulação da extrema-direita. Em rápida pesquisa, pode-se notar que o tema da “simplificação” do licenciamento ambiental dentro do programa federal já era abordado em níveis locais nesse período, como em Alagoas (Maia, 2015).
Somado a isso, a Lei nº 13.874/2019, conhecida como Lei da Liberdade Econômica, foi sancionada em 20 de setembro de 2019 durante o governo Bolsonaro e teve como principal objetivo reduzir a burocracia e promover uma legislação mais favorável ao empreendedorismo no Brasil. Ela instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e estabeleceu garantias para o livre mercado, além de definir a atuação do Estado como agente normativo e regulador. Uma de suas principais diretrizes foi justamente a simplificação e a desburocratização de processos para o exercício de atividades econômicas no Brasil.
Na minha pesquisa de mestrado, pude observar de perto como essa lógica opera (Sousa, 2020). Em análise sobre o processo de desburocratização de normas urbanísticas na cidade do Rio de Janeiro, direcionei meu interesse para o Código de Obras e Edificações Simplificado do Rio de Janeiro (COES) (Lei Complementar nº 198 de 14 de janeiro de 2019), em especial para as regras que regem a produção de habitação na cidade. A narrativa era a mesma: um Estado que precisaria ser rápido e fomentar desenvolvimento. Mas, na prática, o que estava em jogo eram interesses de grandes projetos privados, mascarados de iniciativas de interesse público e social. Isso abrangia os processos de desburocratização, cujos caminhos estratégicos movidos pelo neoliberalismo pontuavam a submissão do Estado às regras de eficácia das empresas privadas (Dardot e Laval, 2016).
Lá, como no atual contexto da PL nº 2159/2021, foi fundamental entender que a categoria ‘desenvolvimento’ é legitimadora de projetos no âmbito local e nacional, e reproduzida nas relações de poder estabelecidas no Estado brasileiro para a gestão territorial (Sousa, 2020).
Trazendo isso para a minha vivência na consultoria ambiental nos últimos dez anos, é nítido como as práticas e modos de conduzir o licenciamento se transformaram. Prazos cada vez mais curtos para acompanhar os interesses econômicos das empresas (geralmente estrangeiras), e uma pressão enorme para realizar estudos extremamente complexos em menor tempo – como o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), por definição um trabalho multidisciplinar, robusto, que exige conhecimentos técnicos específicos, metodologias e leituras próprias do território e seu meio ambiente.
Na minha experiência e compartilhamento de conhecimento entre colegas de trabalho, observo que hoje muitos desses estudos já começam a ser feitos antes mesmo de existir um processo formal de licenciamento dentro do órgão ambiental. Empresas contratam consultorias para produzir estudos antecipadamente (serviço cuja agilidade, inclusive, é comercializada por algumas como diferencial competitivo) apostando que, quando receberem o Termo de Referência (TR) – documento emitido pelo órgão ambiental com orientações sobre como elaborar os estudos e quais informações devem ser apresentadas – já terão algo quase pronto para encaminhar ao órgão ambiental em tempo curto.
Deste modo, nota-se que essa agilidade preconizada pela PL não é exatamente uma novidade: ela já vem sendo praticada nos últimos anos dentro das consultorias ambientais, fruto dessa lógica neoliberal. E isso, na maioria das vezes, não tem a ver com competitividade no sentido técnico, de qualidade, mas sim de quem consegue entregar mais rápido. Ou até mesmo de quem apresenta funcionários que mantem relações e contato direto junto com servidores de órgãos licenciadores, aqueles que eu chamo de “atores intermediários”, para tornar o processo administrativo mais “célere” (Sousa, 2020).
É um modelo que passa por cima do rigor técnico e da qualidade dos estudos. Hoje, em muitos projetos a lógica de contratação de uma determinada consultoria ambiental pelas empresas é: quem faz mais rápido (seja na elaboração do estudo ou no uso da figura de um articulador em seu quadro de funcionários) ganha o contrato.
O que esse projeto de lei faz é institucionalizar essa lógica. Tudo aquilo que hoje acontece nos bastidores (Bronz, 2012), na negociação, na pressão para acelerar processos, poderá passar a ser regra. E pior: a proposta quer acabar de vez com a exigência de certos estudos para projetos que impactam sinergicamente populações vulneráveis e o meio ambiente, sob a justificativa de acelerar o “desenvolvimento” e o futuro do país, como nas palavras do Senador Davi Alcolumbre, União Brasil (Amapá):
Muitos preferem ver o Brasil paralisado, com mais de 5 mil obras travadas, refém da burocracia e de posições ideológicas que não enxergam a realidade de quem precisa de pontes, de estradas, de energia, de infraestrutura para viver com o mínimo de dignidade. O Congresso não quer fazer mais leis, quer fazer leis melhores, leis que destravem o presente e preparem o futuro do nosso país (Jornal Nacional, TV Globo, 21/05/2025).

Registro da reportagem exibida no Jornal Nacional, em 22/05/2025, onde o Senador Davi Alcolumbre discursa o trecho acima.
Isso significa que, se aprovado, sequer teremos diagnósticos sobre os territórios, sobre as populações, sobre os impactos sociais, ambientais, econômicos e a inserção das obras e operação desses projetos. Significa não ter mais avaliação de impacto, não ter mais planejamento e acompanhamento, por parte do órgão ambiental, nem as medidas destinadas para evitar, mitigar ou compensar os danos.
É, literalmente, passar a boiada. É aprovar projetos de viadutos, pontes, hidrelétricas, barragens e outros, especialmente aqueles considerados “emergenciais” e de interesse público pelo Estado, mesmo que tragam consequências devastadoras, uma vez que são projetos que afetam de forma expressiva o meio ambiente e as populações, principalmente as mais vulneráveis. Tudo aquilo que desde a Constituição Federal de 1988, e mesmo desde a Política Nacional de Meio Ambiente aprova na Lei nº 6.938 de 31 de agosto de 1981, conseguimos construir como avanço na legislação ambiental, simplesmente se perde.
O que esse PL traz, na prática, é um enorme retrocesso, um desmonte das garantias que protegem tanto os territórios quanto as populações que neles vivem. Não há, portanto, ausência de intervenção estatal no neoliberalismo; seu poder se exerce de forma indireta, no sentido de orientar as atividades do mercado e incorporar os códigos, normas e padrões definidos por atores ditos como privados, mas que operam por dentro do Estado brasileiro.
Fontes consultadas
AGÊNCIA SENADO. Senado aprova projeto da Lei do Licenciamento Ambiental. Senado Federal, 21 maio 2025. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2025/05/21/senado-aprova-projeto-da-lei-do-licenciamento-ambiental. Acesso em: 23 maio 2025.
BRONZ, Deborah. Nos bastidores do licenciamento ambiental: uma etnografia das práticas empresariais em grandes empreendimentos. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Editora Boitempo, 2016.
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). Brasil pode perder o equivalente ao território do Paraná em florestas. Instituto Socioambiental, 10 maio 2024. Disponível em: https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/brasil-pode-perder-o-equivalente-ao-territorio-do-parana-em-florestas-com. Acesso em: 23 maio 2025.
MAIA, Clarice. Licenciamento ambiental simplificado é abordado no seminário Brasil Mais Simples. IMA, 5 jul. 2023. Disponível em: https://www2.ima.al.gov.br/licenciamento-ambiental-simplificado-e-abordado-no-seminario-brasil-mais-simples/. Acesso em: 23 maio 2025.
SOUSA, Aline Viana de. “Uma nova forma de morar e viver”: as tramas do planejamento urbano e do mercado imobiliário na cidade do Rio de Janeiro. 2020. 172f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) − Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2020. Disponível em: https://www.academia.edu/45686351/_Uma_nova_forma_de_morar_e_viver_as_tramas_do_planejamento_urbano_e_do_mercado_imobili%C3%A1rio_na_cidade_do_Rio_de_Janeiro. Acesso em: 23 maio 2025.
Aline Sousa é pesquisadora do NESP/UFRJ e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da UFRJ. Mestre em Ciências Sociais pelo PPCIS/UERJ (2020) e bacharel em Ciências Sociais pela UERJ (2016), com especialização em Política e Planejamento Urbano pelo IPPUR/UFRJ (2018). Entre as áreas de interesse estão antropologia do estado, práticas estatais, planejamento urbano e cidade, política ambiental. Consultora em estudos socioeconômicos/socioambientais do Licenciamento Ambiental Brasileiro para grandes empreendimentos de infraestrutura.