Museu do Horto: um percurso pelas memórias de uma comunidade resistente
Por Nina Avila
O Museu do Horto foi criado em 2010 pela Associação de Moradores e Amigos do Horto (AMAHOR), região localizada no bairro Jardim Botânico, na Zona Sul do Rio de Janeiro. A entidade promove visitas guiadas pela comunidade para que a população conheça as memórias dos moradores, sua relação com o território e a história dos conflitos fundiários.
Emerson de Souza, morador e cofundador do Museu do Horto, descreve a iniciativa como um “museu vivo”, em que não existe um trajeto pré-definido e cada percurso é criado conforme os interesses do grupo que visita a área e as necessidades dos moradores. Ele ressalta que, neste museu, “o Direito à Moradia é o centro de todas as discussões” (relato pessoal, 2023).
Já conhecia o local há alguns anos e, por meio de redes sociais e canais de notícias, acompanhava as ameaças de remoção aos moradores. Mas foi só na feira da Rede de Museologia Social (REMUS) organizada em dezembro de 2022 que tive a oportunidade de entrar em contato com o Museu do Horto. A proposta educacional e política dos museus comunitários e ecomuseus que compõem a Rede é promover trajetos interativos com o espaço físico e com as pessoas que compõem sua memória. O Museu das Remoções, na Vila Autódromo, e o Museu Sankofa, na Rocinha, são outros exemplos notórios dessa nova museologia.
Após esse encontro, Emerson de Souza agendou um trajeto pelo Museu do Horto para os participantes do projeto de extensão Memórias Sensíveis Brasileiras, vinculado ao Núcleo de Estudos de Espaços, Poder e Simbolismos (NESP) do IFCS/UFRJ. Assim, no dia 05 de junho de 2023 organizamos o percurso pela comunidade com estudantes da UFRJ, UniRio e Uerj por locais simbólicos dos mais de 200 anos de história ocupacional do Horto Florestal. O formato da visita possibilitou, ainda, que parte dessas memórias e vínculos afetivos com o território fossem narrados por moradores.
A partir do trajeto pelo Horto, foi possível observar como os espaços são dinâmicos e estão sempre em transformação em decorrência dos usos do território e dos conflitos fundiários. Assim, nos foi narrado que o jardim que era palco de brincadeiras das crianças hoje é cercado por grades e a permanência no seu entorno é vigiada. Vimos também que o antigo campo de futebol agora é tomado por entulhos. Mesmo a escola municipal Julia Kubitschek, que atende às crianças da comunidade, foi reduzida à metade do seu campus original, desde que a outra parte foi destinada ao estacionamento do Instituto de Pesquisa do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (IPJBRJ). Dessa visita, ecoou uma pergunta: como essas mudanças foram implementadas na área?
A história da comunidade do Horto e as práticas e políticas de remoção
O espaço do Horto começou a ser ocupado no século XVI, com a instalação de um Engenho de Açúcar. Posteriormente, a área foi adensada com a construção do Jardim Botânico em 1808, que levou à região uma onda de novos moradores, muitos deles jardineiros, seguranças e demais trabalhadores do parque que receberam casas da União. Em seguida, no século XX, foi a construção da fábrica de tecidos América Fabril que incentivou operários a construírem vilas residenciais no entorno. Assim, os relatos indicam que muitos dos moradores atuais são descendentes de trabalhadores que participaram das diferentes fases da história do bairro, desde a ocupação da corte portuguesa até a fase de industrialização. Como afirma a pesquisadora Laura de Souza, “o Horto Florestal do Rio de Janeiro, enquanto um campo de pesquisa, é uma fonte rica em documentos, monumentos e memórias da história da cidade do Rio de Janeiro, desde sua origem até os dias de hoje” (Souza, 2012: 36).
Contudo, desde a década de 1980 a continuidade histórica da comunidade do Horto tem sido ameaçada por políticas de despejo mobilizadas por órgãos do Governo Federal. Foi em resposta a essas ameaças, e visando fortalecer a articulação da comunidade, que os moradores criaram a AMAHOR em 1982. A partir dos anos 90, as tentativas de remoção se intensificaram devido ao crescente interesse na ocupação da área, principalmente em decorrência da instalação de segmentos da Rede Globo no Horto e no Alto Jardim Botânico. Esses empreendimentos atraíram novos moradores da elite carioca à região, provocando a elitização de usos com as ocorridas nas vilas da antiga Fábrica de Tecidos Carioca, conhecida como Chácara do Algodão.
As ameaças de remoção partiram do IPJBRJ, órgão federal criado em 1995 para administrar o Parque e vinculado ao Ministério do Meio Ambiente. No entanto, apenas em 2013 foram estabelecidos formalmente os limites territoriais do Jardim Botânico por parte da ministra do meio ambiente da época. Ou seja, um dos principais argumentos mobilizados pela Instituição para a retirada dos moradores – que as casas estariam dentro de sua propriedade – só foi formalizado mais de 20 anos após o início dessas ameaças.
Após a demarcação, foram determinadas as construções que, por não serem relacionadas à pesquisa do IPJBRJ ou à manutenção do parque, deveriam ser desocupadas. Isso resultou na ameaça de despejo a 520 famílias das 621 que compunham a comunidade. Os moradores, no entanto, alegam que esse processo foi feito de maneira arbitrária, sem diálogo com a comunidade e sem que a história da construção do Parque, e do próprio bairro, fosse levada em conta, tendo em vista que muitas casas foram cedidas pelo Governo Federal.
Com a regularização formal do perímetro, intensificou-se a tentativa de remoção da parte da comunidade do Horto localizada mais próxima ao Jardim Botânico. Um dos moradores foi efetivamente removido em 2016, sem que lhe fosse oferecida alternativa de moradia ou qualquer indenização. O terreno da casa permanece sem uso ou manutenção sete anos após a ação. Sendo assim, os moradores questionam as motivações dos órgãos envolvidos na promoção dessas ameaças e práticas de despejo, apontando o cenário de valorização imobiliária da região como catalisador das políticas de alteração do perfil dos moradores do Horto e do Alto Jardim Botânico, atualmente composto majoritariamente por trabalhadores de baixo poder aquisitivo.
O discurso ecológico como legitimador da elitização de usos
Como forma de legitimar as políticas de remoção, o Conselho Gestor do Amigos do Jardim Botânico e a grande imprensa mobilizam o discurso ecológico, argumentando que a comunidade degrada o meio ambiente próximo ao Jardim. No entanto, o trajeto pela comunidade desfaz essa imagem ao possibilitar que observemos como os moradores se mobilizam em torno da preservação da mata e das águas do território. Como ocorre no projeto Horto Natureza, voltado para a preservação do Rio dos Macacos.
Representantes do IPJBRJ também argumentam que a “favelização” dos limites do Parque é incompatível com a função científica e turística do espaço e que o lixo produzido pela comunidade agrava a situação. Em contraposição, a professora de direito pela PUC-Rio, Virgínia Totti Guimarães (2019) classifica o conflito como uma forma de consolidação do modo desigual de ocupação da cidade e de racismo ambiental. Para ela, a remoção dos moradores do bairro intensifica a elitização da área e busca homogeneizar socialmente os moradores do bairro, afastando as famílias de baixa renda do Centro e da Zona Sul.
A comunidade do Horto Florestal é cercada pela mata atlântica, o que torna seu território cada vez mais apreciado. Nesse sentido, o ideário que ganha força e parece sustentar os discursos contra a comunidade, produzidos tanto pelas mídias tradicionais quanto por instituições como o Jardim Botânico, é o da higienização social. A presença de seus moradores em um bairro tão valorizado da Zona Sul carioca subverte a lógica de segregação socioespacial que molda as dinâmicas urbanas das grandes cidades. Em um município como o Rio de Janeiro, essa forma de organização concentra as classes altas nas regiões da cidade com mais proximidade à natureza, tornando-as inacessíveis àqueles que não contam com alto poder financeiro.
A história de resistência e de luta pela permanência dos moradores do Horto segue em curso e conta com uma Associação e diversas outras organizações mobilizadas para garantir que o direito à moradia das famílias que ali moram há décadas seja respeitado. Assim como toda a história e envolvimento da comunidade com seu território.
Referências bibliográficas
GUIMARÃES, Virgínia T. Racismo ambiental e a aplicação diferenciada das normas ambientais: uma aproximação necessária entre os casos da comunidade do Horto Florestal e do condomínio Canto e Mello (Gávea/RJ). In. Desigualdade & Diversidade (PUC-RJ). v.17, 2019. Rio de Janeiro.
SOUZA, Laura O. Carneiro de. Horto Florestal: um lugar de memória da cidade do Rio de Janeiro. A construção do Museu do Horto e seu correspondente projeto social de memória. 2012. Tese (Doutorado) – Serviço Social, Programa de Pós-graduação em Serviço Social, PUC-RJ, abril de 2012.
Nina Avila é graduanda do curso de Ciências Sociais do IFCS/UFRJ e bolsista de Iniciação Científica da UFRJ.