Escombros e sombras de Rio das Pedras e Muzema: a precariedade da moradia na cidade do Rio de Janeiro

Desabamento de prédio em Rio das Pedras. Foto de capa do Jornal O Globo, 04/06/2021.

Por Aline Sousa

Na madrugada de 03 de junho de 2021 desabou mais um prédio de autoconstrução no Rio de Janeiro, no bairro de Rio das Pedras, zona oeste da cidade, trazendo novamente as sombras da tragédia da queda de dois prédios na Muzema em abril de 2019, comunidade próxima à região. Em comum, as duas áreas são conhecidas pela expansão imobiliária promovida pelas milícias, com inúmeras construções irregulares. A cobertura jornalística também apontou as semelhanças dos eventos, retomando as discussões sobre o problema do déficit habitacional e da precariedade do acesso à moradia na cidade.

O prédio de cinco andares que desabou em Rio das Pedras era uma autoconstrução realizada em terreno comprado em meados de 2000. Os andares foram construídos ao longo de cinco anos, sem qualquer projeto técnico ou contratação de serviços de engenharia e arquitetura, para servirem de moradia e trabalho para membros de uma mesma família de migrantes nordestinos. Sou filha de nordestinos e possuo familiares residindo na comunidade. Meu pai inclusive já havia pensado em adquirir uma moradia na comunidade, animado pelos preços baixos. Assim, o evento me atingiu de forma especialmente sensível.

Como discutido por Marcelo Burgos no livro A utopia da Comunidade Rio das Pedras, uma favela carioca (2002), o processo de ocupação na região foi marcado pelo predomínio de imigrantes nordestinos, diante da consolidação do núcleo original de Rio das Pedras em 1969 no governo do estado da Guanabara, no mesmo ano de publicação do Plano Piloto para a urbanização da baixada compreendida ente a Barra da Tijuca, o Pontal de Sernambetiba e Jacarepaguá. A partir da década de 1980, Rio das Pedras expandiu em função da valorização imobiliária da região Barra-Jacarepaguá, da proximidade de bairros com concentração de equipamentos e serviços e dos investimentos de infraestrutura.

Contudo, o mercado imobiliário formado por grandes empresas do setor na cidade não se mostrou interessado em absorver as demandas de moradia para famílias com rendimento de 1 a 2 salários-mínimos. A atuação do setor se concentrou principalmente na produção de habitações por meio de incentivos dos programas federais. Mas os preços dos imóveis ainda ficaram longe de serem acessíveis.

Basta fazermos uma pequena pesquisa para observarmos as diferenças discrepantes dos preços de moradia nas favelas e por meio de financiamento, em diversas áreas do Rio de Janeiro. Comparação que realça os mecanismos de valorização da terra, em que o maior custo da moradia está atrelado à sua localização.

Em relação ao acesso às moradias por políticas habitacionais, como nos casos do extinto Minha Casa Minha Vida e do atual Casa Verde e Amarela instituído pela Lei Federal nº 14.118, de 12 de janeiro de 2021, o valor de venda apresenta média de R$ 120 mil. Tais projetos geralmente são alocados em áreas periféricas e, na maioria das vezes, sem infraestrutura e equipamentos de comércio e serviços. Vale ainda lembrar a venda de apartamentos com valores superiores a R$ 300 mil, que correspondem na cidade ao estoque de apartamentos com pequenas metragens, mas que também estão localizados em áreas periféricas da cidade.

Já nas favelas cariocas é possível encontrar casas por R$ 20 mil, como em Rio das Pedras e no Muzema, o que as tornam uma moradia acessível para a população de baixa renda, inclusive quando se trata dos preços de aluguel, que podem chegar a R$ 500 mensais. Contudo, como dito, uma parcela da comercialização de moradias nessa região está relacionada à atuação das milícias e às práticas ilícitas de construção. Isso nos coloca o seguinte questionamento: como uma família com renda entre 1 a 2 salários-mínimos conseguiria comprar um imóvel por meio de construtoras legalizadas?

A ausência de políticas habitacionais de cunho social na cidade está, assim, diretamente relacionada à falta de acesso dos pobres à moradia e, sobretudo, à produção estatal dos limites entre o legal e o ilegal. Esses extremos na produção habitacional no Rio de Janeiro correspondem às nuances do mercado “formal e informal”, categorias operadas pelo poder público, a imprensa e o mercado imobiliário para estabelecer diferenças de atuação conduzida “dentro e fora” da lei no ramo da construção civil. De um lado, haveria a legalidade conduzida por incorporadoras, construtoras, imobiliárias, escritórios de engenharia e arquitetura. De outro, a ilegalidade associada a grupos criminosos e às práticas de autoconstrução realizadas pelas camadas populares.

A questão da construção ilegal de moradia na zona oeste é velha conhecida da Prefeitura Municipal, pelo menos desde 2010, durante o primeiro mandato de Eduardo Paes (Democratas). Apesar das ações de fiscalização fracassadas ao longo dos anos, uma das formas de combate proposta pela gestão municipal do prefeito seguinte, Marcelo Crivella (Republicanos), foi a alteração de instrumentos de planejamento urbano.

A gestão de Crivella fomentou então a revisão do Código de Obras e Edificações Simplificado (COES) em 2018, aprovada no início de 2019. Objeto da minha dissertação de mestrado defendida no PPCIS/UERJ em 2020, intitulada “Uma nova forma de morar e viver”: as tramas do planejamento urbano e do mercado imobiliário na cidade do Rio de Janeiro, a revisão do COES foi conduzida pela pasta de urbanismo e tinha como objetivo expresso resolver os problemas habitacionais da cidade, principalmente os relacionados à produção de moradias com valores mais acessíveis e ao combate às práticas construtivas das milícias.

Porém, durante a pesquisa observei que a elaboração do Código de Obras direcionou-se à garantia de novos investimentos na cidade por parte do setor de construções de habitação, com intermédio do conjunto de empresários vinculados à Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário (Ademi RJ). As alterações na legislação urbanística estiveram associadas aos processos de concessão de obras “menos burocráticas”, barateamento de projetos e ampliação de novas tipologias de habitação voltadas para consumidores de alta renda em bairros da Zona Sul, área nobre da cidade.

Essas novas tipologias de habitação permitiram em especial a construção de apartamentos menores, os “compactos ou studios”. Para exemplificar, na venda de unidades residenciais do primeiro prédio de compactos da Zona Sul, o Bossa 107, localizado no bairro nobre de Ipanema, um apartamento de 28m² custou R$ 800 mil, e um de 48m², cerca de R$ 1.500 mil.

O conceito de “cidade compacta” atribuído à revisão do COES pelos gestores públicos teve, portanto, uma utilização estratégica na ampliação da verticalização da cidade. A proposta não se relacionou à produção de maior número de apartamentos com tamanhos menores e preços mais acessíveis às diversas camadas da sociedade carioca, como a gestão de Marcelo Crivella defendeu na arena pública. Na prática, o COES proporcionou a construção de apartamentos menores de alto padrão em áreas nobres do Rio de Janeiro, o que permitiu a construção de mais unidades para venda em um mesmo prédio, ou seja, de maior aproveitamento do terreno adquirido pelos empresários do setor imobiliário.

Voltemos à comunidade de Rio das Pedras. Anos antes, ela já havia sido alvo de propostas de intervenções estatais de verticalização com a participação do mercado imobiliário carioca, sendo uma das pautas também da antiga gestão de Marcelo Crivella (Republicanos). Em 2017, um edital de procedimento de manifestação de interesses foi emitido pela Subsecretaria Municipal de Projetos Estratégicos do Gabinete do Prefeito, visando a participação de empresas privadas para a requalificação urbana do local, por meio de instrumentos de planejamento urbano como a Operação Urbana Consorciada.

O projeto possibilitaria a verticalização da comunidade, com a demolição de todas as moradias e investimentos públicos e privados já realizados ali e, em seguida, a redistribuição de seus moradores em centenas de blocos de apartamentos. Contudo, a proposta foi retirada pela Prefeitura meses depois, com a afirmação de que a requalificação urbana deveria levar em consideração as moradias já existentes e, até o momento, não houve novas discussões sobre o tema.

Com a queda do prédio em Rio das Pedras, as sombras e os escombros do problema habitacional na cidade do Rio de Janeiro retornam com todo seu potencial trágico. Os problemas de ilegalidade de construções continuam nas áreas periféricas da cidade, seja pela autoconstrução ou pela continuidade dos avanços desse tipo de atuação exercido pelas milícias nos últimos anos. A isso se associa a inexistência de ações efetivas do poder público para combater tais práticas, além da continuidade das articulações de empresários do mercado imobiliário junto ao aparelho estatal para compor os instrumentos do planejamento urbano, que favorecem a mercantilização das áreas nobres da cidade.

Frente aos eventos de desabamento nas favelas cariocas, é então importante considerarmos que os percursos movidos pelo neoliberalismo privilegiam a criação de situações de mercado e a produção do sujeito empresarial na gestão pública, em estreita cumplicidade com os atores empresariais, como pontuam os escritos de Christian Laval e Pierre Dardot. No caso do Rio de Janeiro, observamos a continuidade do atendimento aos interesses do mercado imobiliário no planejamento da habitação da cidade, sem que haja diferenças significativas entre as políticas urbanas implementadas pela gestão de Marcello Crivella ou de Eduardo Paes. Estamos em ano de revisão do Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro e uma pergunta continua ecoar: com a queda do prédio em Rio das Pedras e mais vidas perdidas, será que a Prefeitura apresentará uma solução efetiva para a precariedade da moradia popular na cidade?

Sinto que nós, cariocas, estamos estagnados em relação à política habitacional. Ano após ano, o tema das favelas é acionado pelos planejadores urbanos como consequência de uma ação de degradação da cidade, como se grande parcela de culpa fosse da população que ocupa as áreas precarizadas. Uma análise elitista, que ignora as desigualdades de renda na cidade e o fato de que cada vez mais pessoas se tornam reféns das práticas imobiliárias das milícias.

 

Aline Sousa é antropóloga e pesquisadora do NESP. Possui pós-graduação em Política e Planejamento Urbano pelo IPPUR/UFRJ e mestrado em Ciências Sociais pelo PPCIS/UERJ.