Quiosque-Memorial Moïse Kabagambe: um relato sobre as dinâmicas de celebração, reparação e mercantilização

Quiosque com retrato de Moïse, em arte de Airá Ocrespo. Divulgação: Prefeitura do Rio, foto de Beth Santos, 2022.

Por Emily Bonagura

O Brasil e o mundo ficaram horrorizados com o assassinato brutal de Moïse Mugenyi Kabagambe em 24 de janeiro de 2022. Moïse sofreu trinta golpes de pedaço de madeira, desferidos por cinco homens, de forma brutal. Isso aconteceu após ele cobrar 200 reais por dois dias de pagamentos atrasados ao gerente do Quiosque Tropicália, localizado no Posto 8 da praia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.

Sete dias depois do ocorrido, a Prefeitura Municipal do Rio e a Secretaria Municipal de Fazenda e Planejamento decidiram, em comum acordo com a concessionária de quiosques Orla Rio, elaborar um projeto memorial como forma de reparar o crime e a tragédia vivida pela família de Moïse. Inicialmente, o planejado era que fosse construído no Quiosque Tropicália, onde ocorreu o assassinato, porém, por questões de segurança e divergências com os antigos donos que não aceitavam deixar o local, o projeto foi realocado para o Parque Madureira Mestre Monarco, localizado no Portão 1.

O projeto concebeu uma modalidade de memorial e quiosque que seria dinâmico e lucrativo, com a intenção de tornar a família de Moïse a administradora do local. Como publicado no site de notícias da Prefeitura do Rio, a iniciativa tinha tanto o objetivo de homenagear Moïse e a cultura africana congolesa, como também de “promover a integração social e econômica de refugiados africanos e reafirmar o compromisso da cidade com a promoção de oportunidades para todos”. A família Kabagambe aceitou a proposta das instituições e administra o quiosque há cerca de um ano.

A história de Moïse Kabagambe abrange, sem dúvida, um conjunto de experiências dolorosas que atravessam a cidade e o país. Ele tinha 14 anos quando chegou em 2011 no Brasil com sua família, refugiados da República Democrática do Congo (RDC). Como conta a mãe de Moïse ao G1, Lotsove Lolo Lavy Ivone, o deslocamento foi necessário em função da guerra civil da província de Ituri, entre a sua etnia Hema e a etnia Lendu, intensificadas desde a Primeira e a Segunda Guerra do Congo (1996-2003). O primeiro golpe de Estado, apoiado pelos Estados Unidos da América (EUA) em 1961, transformou profundamente as estruturas econômicas e sociais do país. E, em 1996, intensificaram-se as crises políticas e conflitos militares (VALENZOLA, 2013). O contexto contemporâneo de RDC é marcado por disputa de terras e recursos naturais, provocando cada vez mais a migração forçada dos congoleses.  A agência da ONU para Refugiados (ACNUR), a partir de dados de março de 2020, calcula que existam mais de 918 mil refugiados e solicitantes de asilo da RDC abrigados em países africanos e cerca de 5 milhões de deslocados internos.

Segundo informado por seus familiares, a jornada de Moïse no Brasil não foi nada fácil. Ele frequentou a escola no Rio de Janeiro até o 2º ano do Ensino Médio e sempre precisou trabalhar para se manter no país com a família, sem conseguir empregos de carteira assinada. Moïse também estava em processo de naturalização brasileira antes de ocorrer a tragédia. Sua mãe contou ao G1 que ele era atencioso e a tratava com carinho: “Quando eu voltava do trabalho, ele perguntava: mãe, você já comeu? Ele fazia comida direto para mim. Ele falava: Você é uma mulher forte. Senta que eu vou fazer para você umas coisas para comer”.

Em janeiro de 2023, quando o Quiosque Moïse já estava funcionando havia oito meses em Madureira, visitei o local para compreender como o espaço abrangia uma memória sensível coletiva através da gramática da “celebração cultural” e da “reparação à xenofobia”. Com a planta divulgada pela Orla Rio ainda em maio de 2022, foi possível notar que a memória de Moïse Kabagambe seria mobilizada a partir de suas raízes africanas congolesas e de uma experiência de consumo, festa e comemoração. O que ainda não estava explícito era como o espaço promoveria uma reflexão sobre a violência sofrida, indicando uma orientação pedagógica para que esses tipo de evento violento não se repetisse no futuro. Uma placa foi feita para afirmar que, através do espaço, seria demonstrado respeito e acolhimento aos refugiados pela Prefeitura do Rio e pelas instituições parceiras, bem como para destacar o conceito do quiosque-memorial como uma experiência gastronômica cultural, sem contextualizar a homenagem.

De terça à quinta-feira, o quiosque-memorial recebe muitas pessoas durante o almoço. Possui cadeiras de madeira tipo poltrona, onde o visitante pode descansar o tempo que quiser enquanto assiste televisão. Nos finais de semana o espaço fica lotado. Fui em um sábado para almoçar o prato do dia, uma feijoada completa. Os clientes pediam petiscos de batata frita, iscas de frango com limão, baldes de cerveja e refrigerantes. O cardápio foi realizado pelo Chef João Diamante, com comidas inspiradas no gosto de Moïse Kagabambe em sua infância, misturando referências do Brasil e Congo nos temperos e sabores. Durante a noite, o espaço se apresenta mais festivo, com música e banda ao vivo. As mesas são retiradas do centro do deck do quiosque para que o público possa dançar ao som de pagode, funk carioca, afrobeat e R&B. O espaço pode também ser alugado para festas de aniversário.

Placa do Quiosque Moïse. Foto de Emily Bonagura, 2022.

Como expõem Andreas Huyssen (2014), a musealização do passado e a mercantilização da memória promovidas pelo Estado são práticas culturais características do século XX. Busca-se representar a memória coletiva em memoriais, monumentos e em formatos diversos de media (televisão, internet, rádio etc.) como parte de projetos de responsabilização por eventos do passado. Como, por exemplo, o caso que menciona das produções globais em 1970 sobre o Holocausto da Alemanha (1933-1945). Na contemporânea Região Portuária do Rio de Janeiro, podemos também observar o funcionamento dessas dinâmicas de gestão de memórias. O Cais do Valongo, analisado por Guimarães e Castro (2023), apresenta uma dinâmica de gestão empresarial das memórias sensíveis, através da mobilização de estratégias globais e de agendas políticas afro-brasileiras. Assim, o espaço foi inscrito como sítio arqueológico pelo IPHAN e eleito patrimônio mundial da UNESCO, se integrando ao mercado competitivo do turismo por meio das memórias traumáticas da escravidão.

É preciso compreender os desafios e dificuldades de lidar com memórias sensíveis e traumáticas no espaço público. Como aponta Sant’Ana e Menezes (2022) o racismo, a xenofobia e o desemprego são uns dos maiores desafios de refugiados congoleses no Brasil. Viver no país é ter que conhecer práticas de resistência de um cotidiano hostil, preconceituoso e marcado pela falta de integração social por serem negros africanos. No processo de reterritorialização, esses refugiados precisam ainda se adaptar às diferenças culturais, formando redes de apoio e se organizando em comunidades para buscar segurança.

O Rio de Janeiro é uma cidade que já passou por diversas transformações urbanas, seja para apagar ou relembrar a história dos africanos e afro-brasileiros. Cabe questionar se estas novas dinâmicas materiais e simbólicas, atreladas ao passado, conseguem superar os problemas sociais, como a desigualdade racial e econômica, através do lucro e entretenimento (SILVA, 2023). No caso do Quiosque Moïse em Madureira, minha análise é que o projeto mobilizou a ideia de que os problemas sociais seriam resolvidos através do empreendedorismo. Mas, como aponta Huyssen (2014), a memória coletiva produzida como bem de consumo pode mobilizar um efeito paradoxal de esquecimento.

O caso motivou a Prefeitura do Rio a implementar algumas políticas sociais voltadas a comunidades de imigrantes e refugiados. Assim, foi criado o Comitê Intersetorial de Políticas de Atenção às Pessoas Refugiadas, Imigrantes e Apátridas (COMPAR-Rio) junto à gerência executiva da Coordenação de Direitos Humanos da Secretaria de Cidadania. Um projeto de lei também foi aprovado pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro, com o título Política Municipal de Proteção dos Direitos da População Migrante de Refugiada, de autoria da vereadora Thais Ferreira (PSOL).

Em uma parceria da Prefeitura do Rio com a Community Organised Relief Effort (CORE), foi inaugurado em 07 de janeiro de 2023 o primeiro Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes do Rio de Janeiro, em espaço cedido pela prefeitura no segundo andar do Mercado Popular Leonel de Moura Brizola, perto da Central do Brasil. O prefeito Eduardo Paes alegou que a iniciativa só foi elaborada depois do caso de Moïse Kabagambe, quando ele declara ter tomado consciência dos problemas vivenciados pelos imigrantes na cidade.

A família continua a busca por justiça a Moïse Kabagambe.

 

Referências bibliográficas

HUYSSEN, Andreas. Políticas de memória no nosso tempo. Lisboa: Universidade Católica Editora. 2014.

SANT’ANA, Fabiana Lemos, & MENEZES, Maria Lucia Pires. Refugiados congoleses no Rio de Janeiro: entre os desafios do refúgio e a resistência. Geo UERJ, (41), e52463. 2022.

SILVA, Soraia Santos da. Mercantilização, raça e memória na Região Portuária do Rio de Janeiro. 21º Congresso Brasileiro de Sociologia UFPA. Disponível em: https://www.sbs2023.sbsociologia.com.br/trabalho/view?ID_TRABALHO=1752. 2023.

GUIMARÃES, Roberta Sampaio; CASTRO, João Paulo Macedo e. A gestão empresarial das memórias sensíveis: poderes, sentidos e práticas em torno do Cais do Valongo no Rio de Janeiro. Tempo Social, São Paulo, v. 35, n. 2, p. 63-82, ago. 2023.

VALENZOLA, Renato Henrique. O conflito na República Democrática do Congo e a ausência do Estado na regulação das relações sociais. Revista do Laboratório de Estudos da Violência da Unesp/Marília, São Paulo, v. 12, p. 59-86, nov. 2013.

 

Emily Bonagura é graduanda em Ciências Sociais pela UFRJ e bolsista de Iniciação Científica pela FAPERJ no projeto “Fluxos e narrativas de memórias sensíveis e dolorosas”, orientado por Roberta Guimarães. O relato apresentado teve como base ampla pesquisa de matérias jornalísticas com o intuito de contribuir na compreensão dessa intervenção urbana para a formação de uma memória coletiva sobre as formas de violência relacionadas ao racismo e à xenofobia e dos desafios na lida com memórias sensíveis e traumáticas no espaço público.