Arquitetura e hostilidade: como chegamos até aqui?

Vigilância, proteção e exclusão. Foto do autor.

Por Antônio Agenor Barbosa

Recentemente fui convidado a contribuir para uma reportagem publicada no Jornal O Pharol, a respeito da “arquitetura hostil na cidade de Juiz de Fora”. Evidente que se trata de um tema necessário e urgente para reflexão, mas nas minhas considerações procurei não me ater exclusivamente às efemérides que ganharam imensa visibilidade midiática. Certamente a mais emblemática delas foi a cena em que o Padre Júlio Lancellotti quebrava a marretadas pedras pontiagudas instaladas debaixo de um viaduto em São Paulo. Em que pese a imensa admiração pelo padre e por seu trabalho voltado aos grupos mais vulneráveis e à população em situação de rua, achei pertinente ampliar o debate provocado pelo seu gesto para situações em que essa “hostilidade” não se apresenta de maneira tão notória.

Assim, uma boa questão a se pensar é como chegamos até o ponto de ser necessário relacionarmos a arquitetura que se faz nas cidades brasileiras com as práticas de hostilidade que, suponho, seriam inconciliáveis em ambientes que prezassem pela plena liberdade e pelas possibilidades múltiplas de encontro entre os diferentes. Mas, por utópica que seja a frase anterior, sabemos que vivemos em ambientes públicos e privados repletos de cerceamento de liberdades, de excessivo controle, de disciplinamento dos corpos e, por fim, de imensa violência e desejo de eliminação das diferenças. Práticas sociais racistas, homofóbicas e misóginas são refletidas com nitidez e muita violência física e simbólica em alguns ambientes, tornando-os inclusive mais hostis para determinados grupos que para outros, como sabemos.

Como chegamos nesse ponto em que o conceito tão nobre e antigo de “arquitetura” se liga à ideia de hostilidade nas suas concepções? A rigor, pouco importa se o termo “arquitetura hostil” seja usado e difundido por urbanistas pois, se assim for, acho que o estão usando inadequadamente. Imagino uma arquitetura que ofereça potência à vida e aos engajamentos possíveis e dignos em torno dela. Como sugere a Fábula de um Arquiteto, do poeta João Cabral de Melo Neto:

A arquitetura como construir portas,

de abrir; ou como construir o aberto;

construir, não como ilhar e prender,

nem construir como fechar secretos;

construir portas abertas, em portas;

casas exclusivamente portas e teto.

O arquiteto: o que abre para o homem

(tudo se sanearia desde casas abertas)

portas por-onde, jamais portas-contra;

por onde, livres: ar luz razão certa.

Claro que vivemos em uma sociedade com um furor punitivista e desejosa que certos grupos sejam excluídos definitivamente da possibilidade de habitar espaços que ampliem a potência de vida. Assim sendo, as práticas de hostilidade nos espaços públicos e privados se configuram como uma espécie de dispositivo socialmente aceitável e permitido, inclusive amplamente enraizado em projetos de arquitetos e do mercado imobiliário, que atua supostamente dentro do projeto elitista de segmentos privilegiados. Não podendo eliminar ou exterminar totalmente de seus ambientes os indesejados e mais vulneráveis, a demarcação física e simbólica da hostilidade se faz necessária para que o lugar social de cada grupo seja facilmente identificado no espaço e, portanto, não seja ultrapassado.

O nefasto legado da escravidão ainda habita nossa visão de mundo elitista e perversa onde, naquele tempo, aos homens e mulheres escravizados era destinado um local hostil, repleto de objetos concebidos para os castigos físicos – a senzala. A hostilidade, portanto, seja das construções dos condomínios fechados atuais ou das práticas sociais protagonizadas pelo Estado, tem público-alvo definido. De certa forma, ela ainda guarda a herança da senzala e, porque não dizer do pelourinho, onde na impossibilidade hoje de serem aplicados castigos físicos contra os empregados, por exemplo, eles são colocados em locais inadequados, insalubres, sem ventilação e isolados de toda e qualquer relação com a as áreas sociais e intimas dos patrões.

Por aqui ainda reina soberano, nos projetos de muitos arquitetos e empreendedores, o nefasto elevador de serviço que, ao contrário do que possa sugerir o nome, serve na prática cotidiana dos condomínios brasileiros para o transporte de empregados que somente podem acessar as residências de seus patrões pela porta dos fundos. Foi Carolina Maria de Jesus que melhor do que ninguém escreveu sobre isso nos anos 1950, em seu impactante livro Quarto de Despejo: Diário de uma favelada. Assim ela conta:

Escrevo a miséria e a vida infausta dos favelados. Eu era revoltada, não acreditava em ninguém. Odiava os políticos e os patrões, porque o meu sonho era escrever e o pobre não pode ter ideal nobre. Eu sabia que ia angariar inimigos, porque ninguém está habituado a esse tipo de literatura. Seja o que Deus quiser. Eu escrevi foi a realidade.

O título do livro remete ao tempo em que começaram a demolir as casas térreas para construir os edifícios e, como Carolina narra,

nós, os pobres, que residíamos nas habitações coletivas, fomos despejados e ficamos residindo debaixo das pontes. É por isso que eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos.

Vemos, portanto, como Carolina Maria de Jesus tinha um entendimento muito claro, melhor que o de muitos urbanistas a serviço da elitização dos espaços, sobre a hostilidade dos ambientes habitacionais e urbanos. Se formos trazer exemplos recentes do cinema brasileiro não há como deixar de mencionar os filmes Que horas ela volta?, da diretora Anna Muylaert (2015), e O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho (2012). Em ambos as redes de socialização em torno dos ambientes da elite estão atravessadas de preconceitos, racismo, hostilidade e, por que não dizer, de certa nostalgia da escravidão, na medida em que as empregadas devem performar uma gramática comportamental que determina, a priori, o seu lugar naqueles ambientes.

Portanto, seguindo os passos do debate que me foi proposto, não consigo imaginar a cidade de Juiz de Fora, ou qualquer outra cidade brasileira, isolada da lógica mais ampla a que me referi acima. Pois há uma visão de mundo entranhada em muitos produtores dos espaços públicos e privados que acredita em propostas segregadoras e não em propostas que unem. Assim, como produtos e artefatos gerados por essa visão de mundo, são feitos bancos de praça onde não se pode descansar, pedras pontiagudas debaixo de viadutos, cercas elétricas e certo paisagismo repressor com plantas espinhosas que não permitem a integração de ambientes e a possibilidade de usufruí-los plenamente. Uma sociedade com muito medo do encontro com o outro. Com medo da invasão da propriedade privada que, muitas vezes, foi grilada ou conquistada de forma ilegal.

O genial e saudoso Marcelo Yuka, no auge da banda O Rappa, compôs a bela canção Minha Alma – A Paz que eu não quero. Poeticamente, ela pode servir de um bom resumo para o que aqui tentei refletir.

A minha alma tá armada e apontada

Para a cara do sossego!

Pois paz sem voz, paz sem voz

Não é paz é medo

Às vezes eu falo com a vida

Às vezes é ela quem diz

Qual a paz que eu não quero conservar

Pra tentar ser feliz?

As grades do condomínio

São pra trazer proteção

Mas também trazem a dúvida

Se é você que tá nessa prisão

 

Antônio Agenor Barbosa – Arquiteto e Urbanista, Mestre em Urbanismo (UFRJ), Doutor em Antropologia Cultural (UFRJ).  Professor Adjunto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFJF. E-mail: antonio.agenor@ufjf.edu.br