Do “Fique em Casa” aos despejos na pandemia: luta social e demanda por reconhecimento

Manifestação dos moradores da Vila Autódromo, zona oeste do Rio de Janeiro. Foto do site DW, 13/07/2016.

Por Carolina Tostes

A questão da falta de acesso popular à moradia em território brasileiro não foi uma novidade surgida com a crise do Covid-19. A mercantilização dos espaços e a globalização das cidades fazem parte de um projeto de regulação, homogeneização e precarização característico da sociedade neoliberal, que se tornou ainda mais visível em meio à crise sanitária, social e econômica do país durante a pandemia. Como exposto por Bruno Reinhardt (2021), o desmantelamento contínuo de direitos básicos e a hipervalorização do indivíduo como um pacote de habilidades a ser oferecido colabora para que as demandas públicas se tornem desagregadas e o campo das exigências sociais fique completamente difuso. A ideia de coletividade também é desvalorizada, incentivando a fragmentação não só da luta organizada a partir de movimentos sociais, como também da articulação de demandas por memória, reconhecimento e reparação.

O histórico de despejos e remoções no Brasil é longo e totaliza, apenas na cidade do Rio de Janeiro, mais de 77 mil pessoas removidas entre 2009 e 2015, conforme dados apresentados pela Prefeitura em julho de 2015 e compilados pelo Dossiê do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro. Seja com a justificativa de serem áreas de risco, proteção ambiental ou através da mobilização de uma ideia de progresso da cidade, a expulsão de parte da população de terrenos supervalorizados pelo mercado imobiliário consiste em uma política de higienização social e violação de direitos básicos que realoca e posiciona pessoas nos espaços a partir de mediações, consensos e convencimentos realizados por parte do Estado.

Para além dos aspectos materiais mais visíveis desse tipo de ação, é importante pensar nos danos subjetivos dos envolvidos. Viver sob a ameaça de acordar com os tratores da Prefeitura na porta de sua casa e ser retirado à força de territórios que, em grande parte dos casos, constituem a história de gerações de famílias, possui dimensões de dor e vulnerabilidade que são diretamente ligados à vida pública. Dessa forma, neste texto reflito sobre os mecanismos de formação de memórias que partem de articulações coletivas direcionadas ao reconhecimento e à reparação pelo Estado. Analiso, assim, as remoções e os despejos como exemplos práticos de processos de desterritorialização e desagregação que afetam os indivíduos e seus conjuntos sociais, mas também como produtores de novas formas de mobilização e de sentidos que surgem no refazimento da vida cotidiana.

Estado neoliberal e gestão da vida pública: as remoções durante a pandemia

 Christian Laval e Pierre Dardot (2016) apontam que o neoliberalismo é o desenvolvimento da lógica do mercado como lógica normativa generalizada, desde o Estado até o mais íntimo das subjetividades. Os autores pensam essa racionalidade como uma nova forma de governamentalidade, que tende à totalização, à mercantilização de todos os aspectos da vida social e à produção de sujeitos motivados pela ideia de concorrência e aperfeiçoamento contínuo. O Estado aparece então como um local de vários governos moldados pela lógica empresarial, que visaria gerir projetos e populações em consonância aos interesses do mercado.

A análise do Estado empresarial neoliberal permite o entendimento de como concessões, arranjos e mediações são feitas na vida pública. Seja a partir da repetição e internalização de um tipo de identidade, seja a partir de mecanismos de participação popular feitos pelo próprio poder público, padrões de legitimidade são produzidos e compartilhados no dia a dia dos indivíduos como forma de gerir conflitos. Pois, como diria Pierre Bourdieu (2014: 5), é preciso haver uma espécie de acordo sobre os terrenos de desacordo e sobre os modos de expressão do desacordo. Dessa forma, a cooptação e desmobilização de diversas demandas populares e coletivas também podem ser entendidas na chave de uma política neoliberal de apagamento dos direitos enquanto demanda pública.

É o que podemos observar na gestão da pandemia da Covid-19, que contabilizou mais de 600 mil óbitos no Brasil e foi considerada a maior crise sanitária do último século no país, sendo acompanhada de grandes instabilidades políticas, sociais e econômicas. A principal medida de prevenção à circulação do vírus foi o incentivo a que as pessoas se mantivessem em isolamento social, ou seja, ficassem em casa. Porém, segundo levantamento da Campanha Despejo Zero, no Brasil mais de 19 mil famílias foram removidas de suas casas durante a pandemia, entre março de 2020 e agosto de 2021, além de outras 93 mil famílias terem sido ameaçadas de despejo no mesmo período. Esse tipo de política de remoção, como já dito, não é novidade no país. Porém, a atuação – ou omissão – do Estado em retirar pessoas de suas casas em meio ao risco iminente de contaminação demonstrou uma das faces mais cruéis do neoliberalismo hoje.

Trago como exemplo dessa política de remoção uma situação concreta. Em 14 de julho de 2021 foi votado no Congresso o projeto de lei, de autoria da deputada federal Natália Bonavides (PT), que impedia despejos, remoções e desapropriações forçadas até 31 de dezembro de 2021. Apesar de ser uma vitória, o projeto não foi aprovado de forma integral. Por meio de vetos e de pressão da bancada ruralista, as áreas rurais foram excluídas da proposta. Além disso, a demarcação temporal até o fim do ano não contemplou a realidade do país sobre a gestão da crise sanitária, que sabemos não possuir ainda data limite para ser resolvida. Como sugerido por Bourdieu (2001), vimos que o espaço físico e social foi definido por exclusões e distinções das posições que o constituem, o que significa dizer que a falta de capital dos moradores das áreas rurais colaborou para que fossem classificados como passíveis de expulsão de seus territórios.

Pensando nisso, a percepção do problema dos despejos e remoções como algo pontual, momentâneo ou até mesmo negociável desconsidera o aspecto coletivo central desse tipo de organização. Para além de movimentos como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), processos de ocupação caracterizam espaços de pontes de solidariedade e de associação política entre indivíduos em uma mesma situação de vulnerabilidade. Um exemplo recente é o Acampamento Campo de Refugiados Primeiro de Maio, no município de Itaguaí (RJ), em um terreno abandonado pela Petrobrás. O acampamento, segundo a organização, contava com cerca de 4 mil famílias vindas principalmente da Baixada Fluminense do estado. A reintegração de posse foi feita em junho de 2021, sem aviso prévio e em meio a bombas de gás lacrimogêneo e violência da Polícia Militar. O terreno, que nas falas dos ocupantes contava com projeto de cozinha coletiva, grupos de trabalho e cultivo de horta, agora está novamente vazio e improdutivo.

Memórias públicas, resistências e reparação

A partir dessas situações, podemos pensar em mecanismos de compartilhamento de memórias também como formas coletivas de resistência. As demandas por reconhecimento direcionadas ao Estado, quando acolhidas e legitimadas, geralmente são acompanhadas de uma proposta de justiça fragmentária. Os envolvidos são reparados em níveis diferentes, danos psicológicos não são considerados a priori e o aparelho burocrático atua para confundir e dificultar processos jurídicos. Além disso, apesar do sofrimento coletivo ser um forte mecanismo de aglutinação, as identidades e relações construídas naquele espaço não podem ser transferidas para outro de maneira mecânica e pragmática. A reparação nunca é feita de forma integral. É impossível reconstruir artificialmente o que foi perdido.

Apesar dessa tentativa de desmantelamento de reivindicações de reconhecimentos coletivos, diversos acervos de memórias são construídos em espaços que sofreram e sofrem tentativas de remoção. A comunidade da Vila Autódromo, na região oeste do Rio de Janeiro, possui histórico de resistência desde a década de 1990 e seus moradores criaram o Museu das Remoções com o lema ‘’Memória não se remove’’, aberto para visitação presencial e com vasto material online. Outro caso emblemático na cidade é a Comunidade do Horto, na zona sul do Rio de Janeiro, localizada perto do Jardim Botânico. A comunidade sofre ameaças por parte da Prefeitura há décadas e tem uma relação conflituosa com a emissora Globo, cuja sede está situada em local próximo e possui interesses relacionados ao terreno. Os moradores estão criando uma iniciativa semelhante para preservar a história do local, o Centro de Memória do Horto, a partir de documentos pessoais dos moradores, fotografias, matérias de jornais e arquivos relacionados ao bairro e à comunidade.

Esses são apenas alguns exemplos de organização coletiva para reivindicação de uma memória pública como forma de resistência e de refazimento da vida cotidiana, mobilizando principalmente discursos sobre emoções e sofrimento e se contrapondo à inclinação neoliberal de fragmentação e ou mesmo apagamento da luta por direitos. Dessa forma, apesar das modulações de reconhecimento social e de mecanismos de justiça operados hoje pelo Estado ainda não considerarem esses eventos e experiências relacionados às remoções como produtores de dor e sofrimento, aqueles que os vivenciam continuam em busca do resgate da ideia de comum para transformar a dura realidade social.

Referências

BOURDIEU, Pierre. 2014. “Curso de 18 de janeiro de 1990”. Sobre o Estado. São Paulo: Cia. das Letras.

BOURDIEU, Pierre. 2001. “Efeitos de lugar”. A Miséria do Mundo. Petrópolis: Vozes. pp. 159-166.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. 2016. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Editora Boitempo.

REINHARDT, Bruno. 2021. “As leituras elementares da vida acadêmica: neoliberalismo”. Blog do Labemus, 15/06/2021.

 

Carolina Tostes é graduanda do curso de Ciências Sociais do IFCS/UFRJ.