Como o intolerável da violência se torna tolerável para a sociedade?

 

Presídio Juiz Antônio Luiz Lins de Barros (Complexo do Curado), Recife. Foto: G.Dettmar/ Ag.CNJ, 18/08/2022.

Por Emily Bonagura & Roberta Guimarães

O sistema penal e carcerário é um tema sensível e atravessado por mazelas de caráter coletivo e estrutural do país, como o racismo e o abismo entre classes sociais. As experiências dos que por ele passam são dolorosas e, quando não silenciadas, se revelam em narrativas traumáticas que expõem violências e exclusões de diversos níveis.

Este texto foi produzido a partir de falas dos participantes da 1ª Roda de Conversa do projeto de extensão Memórias Sensíveis Brasileiras, vinculado ao Departamento de Antropologia do Ifcs/UFRJ. A atividade foi aberta ao público e contou com dois convidados: Ana Tonini, cientista social e integrante do Coletiva Tod@s Unid@s, e Fernando Rabossi, professor do PPGSA/UFRJ. Para estimular o debate, sugeriu-se o visionamento prévio das produções “PCC: Poder Secreto” (2022, direção Joel Zito) e “Auto de Resistência” (2018, direção Lula Carvalho e Natasha Neri). No dia do encontro, projetamos o documentário “Ordálio” (2013, direção Ana Tonini).

Segundo dados do Infopen divulgados em 2020, o país apresenta o terceiro maior índice de encarceramento do mundo, em termos absolutos. Contudo, a maior parte dos presos não possui antecedentes criminais e suas detenções foram motivadas por crimes não violentos ou de baixo impacto social, como os de tráfico de pequena quantidade de drogas, sem porte de armas. Dessa população carcerária, 34% são presos provisórios que aguardam julgamento. Enquanto isso, superlotam as prisões e fazem girar o lucrativo mercado dos presídios, que inclui grandes construtoras, empresas de segurança, máfias de fornecimento de alimentos etc.

No sistema carcerário feminino a violência se mostra amplificava em função das desigualdades de gênero. Além de privadas de liberdade, as mulheres têm seus corpos expostos, sua individualidade destruída e laços sociais desfeitos. Não há privacidade para utilizar o banheiro ou para a troca de roupa. As visitas são escassas, já que irmãs, mães, tias e avós estão cuidando de outros familiares, das crianças, dos doentes. Não há tempo.

No processo de manutenção desse sistema penal e carcerário, surpreendem os números de mortes causadas por policiais e a disputa pública sobre a moralidade atribuída às suas ações, em especial sobre a legalidade do “direito de matar” justificativa pela “luta contra o crime”. São incontáveis os casos de tortura e execução. Corpos que se empilham e dos quais ninguém fala, perdidos nos mangues, jogados em valas. Corpos tratados como se as pessoas não fizessem falta.

De onde vem esse ódio? Como se tornou normal para a sociedade? Por que a indignação só alcança os que tem um ente querido vitimado pela brutalidade?

Uma interpretação possível é que o processo de formação do Estado brasileiro calcado na escravidão de pessoas negras deixou como legado um olhar que animaliza o outro, produziu uma subjetivação da violência. A frase “eu sou trabalhador” ecoa como uma forma dos moradores de lugares marcados pela pobreza reafirmarem sua inocência, de lembrarem que são humanos. Como se a precária inserção no sistema capitalista de trabalho e a habitação em favelas e periferias fossem indícios de má índole, não a cruel expressão da exclusão e do racismo.

Há assim uma contínua criação desse outro urbano, o “bandido”, imaginário alimentado pelo ideal do “cidadão de bem” supostamente portador de uma moral superior. Mas como esquecer que os identificados como moradores, policiais e bandidos se misturam nos territórios pobres, são muitas vezes criados juntos? Que se conhecem, transitam pelos mesmos mundos sociais, compartilham sonhos e frustrações? Nessa relação cotidiana e intersubjetiva, nada se apresenta de modo tão nítido, as fronteiras entre o violento e o não violento se borram, os caminhos e oportunidades se cruzam.

Dessa forma, o que separa quem morre e quem vive passa não por grupos bem definidos, mas por encarnações do poder. O uniforme e as armas materializam e comunicam o poder. A sala da corte, a burocracia dos processos e seus operadores jurídicos também.

Os desafios das produções artísticas e culturais brasileiras parecem residir então na articulação de uma representação mediada, capaz de descontruir o imaginário sobre os pobres como trabalhadores ou bandidos ou policiais. Que consiga narrar eventos e experiências violentas sem fortalecer a dualidade do bem contra o mal. Nos ajudando, enquanto sociedade, a ultrapassar a expectativa de que uma liderança carismática surja para solucionar um quadro social tão complexo. Engajando diferentes segmentos na criação de novas formas de comunicação da dor e do sofrimento.

Talvez um caminho de superação das dicotomias entre “bem e mal” e “nós e eles” seja a fabulação de imaginários afetivos, que reverberem as vozes das pessoas que foram vitimadas ou encarceradas, suas experiências, ambiguidades e dúvidas. Sem que haja a banalização ou espetacularização da violência.

Emily Bonagura é graduanda do curso de Ciências Sociais do IFCS/UFRJ e bolsista de Iniciação Científica da Faperj.

Roberta Guimarães é professora do Departamento de Antropologia Cultural do IFCS/UFRJ e coordenadora do NESP/UFRJ.