Fantasmagorias das políticas de reconhecimento de memórias

Desenho abstrato de Juarez Paraiso. 1962. Fonte: http://www.dicionario.belasartes.ufba.br/wp/verbete/juarez-paraiso/

Por Roberta Sampaio Guimarães

Certas conversas povoam meu imaginário, mesmo tendo se passado muitos anos. Parecem com o que Vincent Crapanzano chamou de “figuras da imaginação ou da memória, beirando o mundo ensombreado do fantasma”. Remetem a uma interlocução latente, que influencia as leituras da realidade mesmo quando ausente do momento experiencial. Essa é a definição que mais se aproxima da lembrança da entrevista que realizei com Joel Rufino, falecido historiador e presidente da Fundação Cultural Palmares entre 1994 e 1996 – época em que a instituição tinha em seus altos postos pessoas comprometidas com as lutas dos movimentos sociais.

A recente evocação da conversa surgiu após uma aula que ministrava para graduandos em ciências sociais. O curso tratava das experiências e narrativas de violência e frequentemente mobilizava debates sobre as dinâmicas de produção de memórias e de organização de pleitos de reconhecimento, justiça e reparação por comunidades políticas. Uma pergunta em especial me trouxe a lembrança de Rufino: por que determinadas narrativas de violência ganham grande projeção social e outras parecem não conseguir ressonância, sendo recordadas eventualmente ou logo justapostas a outros relatos?

Foi pensando em possíveis respostas que lembrei do historiador sentado no sofá de seu apartamento. Era julho de 2008 e eu desenvolvia uma pesquisa de doutorado em antropologia sobre os efeitos das políticas patrimoniais e urbanísticas atreladas à “revitalização” da região portuária do Rio de Janeiro. Acompanhava particularmente um conflito fundiário marcado por grande assimetria de poder e por uma sequência de ações policiais e judiciais de intimidação e despejo.

Naquela época, mediadores sociais que atuavam junto aos órgãos governamentais interpretaram a situação de violência como um conflito de viés identitário. A articulação de duas heranças emergiu assim com força na arena pública: uma que valorizava a tradição afrodescendente do santo na região, outra que ressaltava sua tradição católica portuguesa e espanhola. Uma que apontava para os efeitos dolorosos da escravidão, outra que celebrava as realizações coloniais. Não significava, é claro, se tratar de uma simples controvérsia, onde duas versões tentavam convencer a sociedade através de diferentes argumentos. Era um embate para a produção de uma verdade estatal que, ao tangenciar questões relativas ao reconhecimento da violência da escravidão, poderia conduzir a pleitos de reparação histórica baseados no apelo a um dever de memória.

As dinâmicas políticas desse conflito ferviam na minha cabeça quando encontrei Rufino. Investido de grande autoridade acadêmica e política, ele tinha desempenhado importante papel na construção da narrativa afrodescendente da região portuária durante os anos 1980, quando atuou como parecerista do processo de tombamento da Pedra do Sal como monumento afro-brasileiro. Conversamos por quase duas horas.

Hoje, passados treze anos, acredito que, no espaço intersubjetivo do nosso encontro, projetei nele minhas ansiedades frente às dinâmicas que observava. Pois via transcorrer ali na região diferentes guerras de sentidos, afetos e interesses que ultrapassavam os limites do conflito fundiário. Havia também uma disputa pelos poucos recursos que eram distribuídos por entidades públicas e privadas, por meio de editais de cultura e de ações de assistência social. Além de desentendimentos e preconceitos religiosos e racializados de longa data, cujos estudos de Roger Bastide e Florestan Fernandes já buscavam entender nos anos 1950. Esses reverberavam, em especial, minhas próprias histórias familiares.

Voltemos então ao aspecto fantasmagórico da entrevista. De tudo o que foi dito por Rufino na ocasião, o que os debates travados em sala de aula evocaram foi sua preocupação de que as dinâmicas geradas pela mercantilização dos espaços da região produzissem uma espécie de concorrência entre memórias de grupos subalternos e populares. Uma luta “do roto contra o esfarrapado”, segundo suas palavras. Ou seja, ele apontava para um outro lugar, fora e além daquele conflito. Vislumbrava possíveis segregações de grupos que, não tendo articulação política para organizar um discurso de viés culturalista e através dele obter reconhecimento público, ficariam ainda mais marginalizados no processo de revitalização.

Sua apreensão me deixou hesitante: do ponto de vista da responsabilidade moral que eu tinha como produtora de uma escrita acadêmica, seria desejável relatar os dissensos entre grupos e as ambiguidades das políticas de reconhecimento, e com isso talvez provocar um enfraquecimento dos que, às duras penas, se mobilizavam e lutavam? Sem conseguir desatar todos os nós durante a tese de doutorado, encontrei soluções provisórias, mantendo pequenas frestas e rastros na escrita onde ficassem perceptíveis as tensões que perpassavam a vida cotidiana da região.

Contudo, como tenho buscado refletir sobre a difusão na esfera pública de noções como trauma, testemunho, vítimas e algozes, arrisco hoje distintos caminhos de entendimento. Um deles vai na direção de perceber as conexões das políticas de memória sobre eventos violentos com o poder de ação de determinados grupos na esfera pública, como proposto por Annette Wieviorka. Outro busca considerar as práticas estatais de enquadramento e controle de eventos traumáticos e dolorosos por meio de discursos oficiais, como tratado por Veena Das. Um terceiro tenta ainda entender o processo de empoderamento de indivíduos e coletividades através da formação de comunidades políticas baseadas em uma gramática emocional, como em Myriam Jimeno.

Mas, se há tantas possibilidades reflexivas, qual a fantasmagoria que continua me assombrando? Acredito que ela esteja no cruzamento entre os aspectos subjetivos e políticos da questão. Pois me parece que as políticas patrimoniais, ao identificarem e gerirem as memórias de segmentos da população, cada vez mais incentivam os mecanismos de financiamento, promoção e conservação de bens e experiências. Reside aí um paradoxo que não é banal: ao mesmo tempo que o reconhecimento amplia a presença de grupos subalternos na esfera pública, as formas como essa inserção se operacionaliza produz uma subjetividade baseada em uma lógica concorrencial que, como apontado por Christian Laval e Pierre Dardot, coloca a todos como sujeitos destinados a “empreender” e a “competir”.

Variações dessa lógica podem ser vistas também em algumas recentes grandes manifestações de rua, como as Jornadas de Junho de 2013 no Brasil, os coletes amarelos na França em 2018 ou a atual greve geral na Colômbia. Nesses eventos, uma insatisfação generalizada tem sido expressa por meio de múltiplas pautas e palavras de ordem. Estar na rua, cada qual com sua bandeira, significaria disputar um lugar de escuta e de reconhecimento. É a diferença que surge afirmada como valor, não a formulação de um lugar comum de sofrimento e, consequentemente, de ação.

Para finalizar, gostaria de deixar claro que não atribuo, de forma alguma, essas ideias a Joel Rufino. Algumas citações diretas de sua fala foram publicadas no jornal Batucadas Brasileira, pequeno tabloide produzido por um coletivo artístico da região portuária, cujo formato reduzido da página não poderia comportar as nuances do nosso diálogo. Como interlocutor da imaginação, a lembrança serviu aqui apenas para reanimar minhas inquietações sobre os desafios das lutas sociais frente à logica concorrencial.

Obviamente, não se trata de negar o poder de agência dos indivíduos componentes dessas lutas, nem de apregoar uma leitura melancólica da contemporaneidade. Só desejo lembrar que a história é um terreno político em constante disputa. Não há um Estado detentor de poder absoluto de construção de identidades. Nem vítimas inocentes e manipuláveis à espera de escuta e salvação. Ou lutas sociais que consigam ficar totalmente à margem da racionalidade neoliberal dos nossos tempos. Encerro então com uma fala-antídoto de Rufino às repostas fáceis: “Eu travo a luta social, mas só vejo luta na frente. Não vejo nada resolvido, vejo só luta”.

 

Roberta Sampaio Guimarães é antropóloga, professora do DAC/IFCS/UFRJ e coordenadora do NESP. Autora do livro A utopia da Pequena África. Projetos urbanísticos, patrimônios conflitos na Zona Portuária carioca (FGV, 2014) e organizadora da coletânea A Alma das Coisas. Patrimônios, materialidade e ressonância (Mauad, 2013).