Greve geral na Colômbia. Do medo à reação contra o neoliberalismo uribista

Manifestantes ocupam o Monumento dos Heróis Nacionais em Bogotá. Foto: Facebook Aula & Palabra – Prensa Estudiantil, 12 de maio de 2021.

Por Luz Stella Rodríguez Cáceres

 

“Saímos para protestar na pandemia porque esse governo é mais perigoso que o vírus”

Essa é umas das frases portadas pelos cartazes dos manifestantes que deram início a uma jornada de greve sem termo de tempo definido na Colômbia em 28 de abril de 2021. Outra frase que chama atenção diz “Nos tiraram tanto, que nos tiraram até o medo”. Ambas invertem duas máximas nas quais se fundou o republicanismo colombiano: “medo ao povo” e “o povo é perigoso”. O mito da democracia mais antiga do continente, que alguns costumam situar a sua origem em 1810 e que tem como ilusório legado o rito eleitoral ininterrupto desde 1830, se funda convocando o poder do povo mas, paradoxalmente o temendo. Medo e perigo acompanham a história colonial e republicana da Colômbia que hoje põe em xeque o governo de Iván Duque.

O cenário atual de protestos na Colômbia é protagonizado por um povo que diz não ter mais medo. Os protestos foram a resposta dos cidadãos à reforma tributária que seria apresentada em 2021 ao Congresso pelo presidente Duque (Centro Democrático), eleito em 2018 como sucessor do ex-presidente Álvaro Uribe. A proposta tinha o objetivo de arrecadar 30 bilhões de pesos colombianos, aproximadamente 680 milhões de dólares.

Durante sua campanha, Duque havia prometido cortar impostos que incidiam sobre as empresas para promover o crescimento econômico. Na reforma tributária anterior, aprovada em 2018, o governo cortou cerca de US$ 14 bilhões em impostos às empresas, sob a promessa de gerar novos empregos. O corte de impostos sobre empresas teria que ser compensado com a redução de gastos públicos ou com o aumento de impostos para os contribuintes, o que não aconteceu.

O lançamento da nova reforma foi feito em plena crise econômica e social gerada pela pandemia de Covid-19, em um cenário de altos índices de desemprego e aumento generalizado da pobreza. Para se ter uma ideia, hoje o país tem 21 milhões de pobres em uma população estimada em 50 milhões de habitantes. O gesto das pessoas de pendurar panos vermelhos nas janelas das casas como forma de sinalizar que há fome e que se precisa de ajuda tem se multiplicado pelas ruas dos bairros mais pobres.

A reforma, que para muitos tinha nascido morta, aprofundaria o modelo neoliberal. Seu ataque incidiria principalmente nas classes médias e baixas, através da taxação de itens da cesta básica e da obrigatoriedade de pessoas que ganhassem acima de dois salários mínimos declararem imposto de renda. Tudo sem afetar aos mais ricos e aos grandes capitais.

Vale a pena lembrar que essa agenda neoliberal tem sido levada a ferro e fogo desde a década de 1990, quando foram implementadas no país drásticas medidas, como a Lei 100 de 1993 que atuou na comercialização e privatização dos serviços de saúde e fez com que atualmente não exista mais na Colômbia um sistema público de atendimento. A Lei 100 é um modelo de política neoliberal imposto por organizações externas para condicionar o recebimento de empréstimos internacionais. Com Uribe, que governou o país por dois mandatos consecutivos (2002 – 2010), o país vivenciou a flexibilização das normas de trabalho até chegar aos limites da precarização, levando a maior parte dos trabalhadores a serem contratados por serviços temporários ou por hora. Sem direitos, previdência ou férias.

A massiva participação de todos os setores sociais do país é lida por alguns analistas como a segunda parte das manifestações de novembro de 2019, que ficaram suspensas com o início da pandemia. Dessa data até hoje, os vetores de mobilização têm se acumulado: à fome se somam o não cumprimento dos acordo de Paz de La Habana, o aumento da violência visto em massacres e mortes a líderes sociais em áreas rurais do país e a corrupção que só aprofunda o quadro de vulnerabilidade e desigualdades acirradas pelas políticas neoliberais e o narcotráfico. O governo ainda pretende submeter uma nova reforma à saúde e ao sistema de aposentadoria, ambos já modificados pela Lei 100 de 1993.

Enquanto isso, Duque pede mais austeridade aos contribuintes ao mesmo tempo que incorre em onerosos e desnecessários gastos, como a compra de veículos oficiais. Ele ainda cogita a compra de vinte aviões-caça no valor de  4 milhões de dólares, valor que, estima-se, seria o equivalente a 60% do que se pretendia arrecadar com a reforma.

O estopim para uma mobilização popular em todas as cidades do país foi tal situação absurda de que, durante a pandemia, os recursos públicos fossem canalizados para gastos supérfluos e para subsídios aos mais ricos, junto às declarações mentirosas do presidente que justificou o desajuste fiscal pela pandemia e pelas ajudas que teriam que ser dadas aos mais necessitados no contexto do confinamento. Na realidade, a vacinação avança vagorosamente e o Estado só tem destinado 2,8 % do PIB para combater os efeitos da pandemia. O buraco fiscal foi produto pelo aumento do gasto público durante o governo de Uribe, graças à bonança petroleira que terminou em 2014. Mas a gota que derramou a fúria foram as declarações públicas do ministro de economia, Alberto Carrasquilla, quando afirmou que o preço de uma bandeja de ovos estava em torno de 2 reais, quando na realidade custava 10 reais, demostrando a desconexão total com a realidade cotidiana das famílias que dependem de cesta básica.

Duque cutucou a onça com vara curta e agora está acontecendo o que tinha que acontecer. A reforma caiu pela pressão das ruas e levou junto o ministro de economia, mas a sua queda não foi suficiente para sufocar os ânimos. Os manifestantes colecionam desagravos. Somaram-se a eles indígenas, afrodescendentes, camponeses e caminhoneiros, porque a lista de insatisfações populares só aumenta, especialmente para a juventude que não enxerga horizontes. Sem acesso à educação superior, já que a exígua universidade pública é paga e a privada inalcançável para as maiorias cada vez mais pauperizadas, resta aos jovens trabalharem como entregadores de comida por aplicativo. O sentimento de desesperança se traduz na incapacidade de subir na escala social, não importa o quanto se trabalhe ou o quanto se estude. Esse é o combustível dos jovens que conformam a “primeira linha” nas manifestações.

A resposta do governo tem sido uma sanguinária repressão. A força pública foi convocada e avivada pelas postagens incendiárias no Twitter do ex-presidente Uribe para que a polícia lute contra o “inimigo interno”: uma juventude com fome e munida de escudos de madeira que atira pedras e paus contra um ESMAD (Escuadrón Móvil Antidisturbios) que atira balas e que já colocou carros de combate nas ruas e efetuou disparos aéreos com artilharia de guerra em várias cidades do país. De acordo com as cifras da ONG Indepaz, até 10 de maio registraram-se 489 pessoas feridas, 435 desaparecidas, 15 estupros, 52 homicídios, 33 pessoas que perderam um dos seus olhos e 1.365 detenções arbitrárias pela polícia nacional.

Os métodos do governo para conter os protestos passam pela militarização das cidades e criminalização dos manifestantes. A polícia nacional tem apelado para uma autêntica estratégia de terror, com uso de infiltrados e policiais à paisana que cometem atos de vandalismo para justificar a repressão. Um roteiro clássico já fartamente ensaiado em antigas manifestações. Tweets efetuados por Álvaro Uribe, líder do partido do governo, demostram que o terrorismo do Estado também vem se alimentando da teoria da “revolução molecular dissipada” um termo cunhado pelo chileno Alexis López, intelectual nacionalista e fundador de um movimento de viés neonazista no Chile, que se tornou ícone dos círculos de pensamento que rodeavam o ditador Augusto Pinochet.

Essa teoria foi disseminada para os membros da Força Pública, quando López foi convidado para palestrar em fevereiro de 2021 na Universidade Militar Nueva Granada.  Sua abordagem é baseada em uma distorção do texto “A Revolução Molecular” de Félix Guattari, usada para acusar o protesto social como uma ação que visaria desestabilizar o governo para a tomada do poder.  A partir dessa visão, as marchas, mesmo as pacíficas, são percebidas como uma ameaça terrorista contra a segurança do Estado

Com esse gesto, o governo da Colômbia não apenas replica o falido modelo econômico chileno, como também aperfeiçoa a sua repressão com dicas da extrema direita daquele país. Enquadrada na desgastada matriz anticomunista que culpa a esquerda pelo descontentamento social, ensaia-se a versão do “inimigo interno”, onde qualquer jovem pode se tornar alvo de repressão policial, tenha ou não cometido um delito.

A repressão tem sido a gasolina com a qual Duque pretende apagar o fogo e silenciar as rua, mas as vozes de repúdio se multiplicam com indignada razão frente à desproporção da violência usada por parte da força pública para “conter” os protestos. Os mesmos se inflamam com os flagrantes  da produção de atos de vandalismo pelos membros do ESMAD, que durante os protestos viram suas roupas com identificação pelo avesso e recrutam agitadores. Isso acontece paralelo à democratização da informação que proporcionou aparelhos celulares e acesso à internet. Na medida em que as pessoas, testemunhas ou vítimas filmam e narram as atrocidades do ESMAD e as compartilham instantaneamente entre seus contatos, elas se tornam geradoras de conteúdo e notícias sem mediação. Disputam assim com as narrativas da mídia tradicional, que vem perdendo a hegemonia da comunicação e seu poder de manipulação como braço do governo e das oligarquias. As sabotagens do acesso à Internet reportadas em Cali, capital do sul-ocidente colombiano que tem sido um dos focos de resistência e repressão, não são coincidência.

Paralela à violência da força pública, o governo estabeleceu diálogos e negociações com o Comitê Nacional da Greve, composto pelas centrais de trabalhadores, as confederações dos aposentados, do sindicato da educação e dos caminhoneiros. Um comitê que carece de legitimidade porque, no sentir das maiorias sem trabalho, sem aposentadoria e sem educação, essas instâncias não os representam. O descrédito na política partidária se amplia para a apatia generalizada e a desconfiança na democracia representativa que, ao povo, aparece como uma carcaça vazia, ou um cabide de empregos onde ninguém é confiável.

É no meio dessa crise de representatividade que o governo faz suas apostas, enquanto finge que dialoga. Duque aposta no desgaste e cansaço do movimento popular após duas semanas de marchas, manifestações pacíficas, bloqueios de rua e uma árdua resistência aos desmandes do ESMAD. À tentativa do uribismo de asfixiar o protesto mediante o combate das ruas com a violência desenfreada de uma tática militar, se soma a promoção de uma guerra interna que busca colocar me confronto o povo contra o povo, mediante a estigmatização do protesta e a difusão de boatos de desabastecimento e de  bloqueios que restringem serviços essenciais como a passagem de ambulâncias.

Os ataques recebidos pelo movimento indígena no último 9 de maio em Cali por parte de homens fortemente armados agrupados em luxuosas camionetas sem placas e escoltados pela polícia podem ser lidos do ponto de vista do para-militarismo clássico, mas há mais do que isso. Os fatos foram apresentados pela emissora Caracol, com a seguinte manchete: “Cidadãos e indígenas se enfrentam”, em uma clara demonstração da racialização de um dos atores protagonistas do protesta. Ao responsabilizá-los pela desordem da greve, essa mídia não apenas reproduz o discurso classista patriarcal do governo e das elites, que considera que indígenas não seriam cidadãos, mas também aposta na divisão do movimento popular. Aqui chama a atenção como o “medo ao povo” volta a ser mobilizado nesses discursos, exigindo que as análises de militarização e securitização na Colômbia sejam atravessadas pelo fator do racismo. Na mesma noite desses atos, o presidente Duque emitiu um comunicado pedindo aos indígenas que abandonassem Cali e voltassem aos seus territórios, deixando claro que o governo se encontra do lado dos autores dos ataques: habitantes de classe alta de um exclusivo bairro de Cali, que se vestiam de branco para simbolizar serem pessoas de bem, ao mesmo tempo que exibiam sem pudor suas armas.

Nessas duas semanas de protestos, as ruas também têm se pintando de cores, de festa,  música, arte e performances que carregam a bandeira da denúncia, mas também da  esperança por mudanças de fundo. Pipocam nas redes sociais fotografias aéreas com dizeres gigantes com letras em branco sobre o asfalto escuro que contém o nome da cidade seguido pelo adjetivo “anti-uribista”. A mensagem é clara. Uma enquete publicada em 11 de maio por DATEXCO informa que 70% dos colombianos apoiam a greve nacional. Talvez seja esse o medo para um governo autoritário de extrema direita. O uribismo se desmancha, mas agoniza atirando. No clima pré-eleitoral de 2022, o perigo para o governo uribista é que o povo, que agora fabrica sua própria narrativa, também tenha perdido o medo do vírus e das balas do governo.

 

Luz Stella Rodriguez Cáceres é antropóloga pela Universidade Nacional da Colômbia e doutora em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É pesquisadora do grupo Arte, Cultura e Poder da UERJ e autora dos livros Pelos Caminhos do Cafundá. Paisagem e Memória de um Quilombo Carioca (Papéis Selvagens, 2019) e Desbravando o Sertão Carioca, Etnografia da Reinvenção de uma Paisagem (Zazie Edições, 2019).